As Horas Desoladas
outubro 19, 2013
As Horas Desoladas
Do livro O Deslizar das Horas
Editora Komedi 2008
E um dia de tão livre
desejarás a morte
para iludir o não-pertencer
e na suprema arrogância do não-querer
ouvirás o silvo distante do trem do adeus
ecoando gestos de ternura omitidos
no quarto de despejo das ausências
e de desejo se gretará a carne
à espera das chuvas de antanho
nos ocos sem fundo do não-dito
e como quem dobra os sinos
dobrarás as asas
de seda e violência
tal mortalha usada
voltando ao baú das ilusões mutiladas
e ainda estremecido pelo rufar do furor ferido de existir
ardor antes do bolor
colocarás a lápide do mutismo
sobre o estrebuchar da existência
já cacos de aspirações
girando no sideral da incompletude
folhas de outono sob o mistral da finitude
as lâminas do silêncio
ungindo as fissuras da alma
recolhida como feto entre deuses destronados
no deserto do verbo
exílio do tempo
na desolação de seu próprio infinito
alma desterrada
sem destino
sem a luz do sangue
sem redenção
sedenta da prisão do amor
do amor não tido
do amor não sido
do amor não exaurido
do amor não vivido
*
*
*
O Amor Partido
E partes amor
e parte-se o amor
metade vagando pelo sem-destino infinito
à deriva
preenchendo o vazio com palavras
imaginárias não-ditas imaginadas
apenas escritas
e entrincheirado na medina do me alvor
entre séculos de pedra onde a luz mal alumia
os meandros dos meus sentimentos
indago
que viste em meus extremos
para ousar acariciá-los
e logo deixá-los à beira da falésia
o glauco tentando atraindo
como bálsamo da solidão
lá embaixo
onde jazem as panóplias enferrujadas da paixão?
que vislumbraste no gladiador da identidade?
no paladino dos mal-amados?
no peregrino sem hadj?
o tropel de existir
entre o furor da carne e o perdão do silêncio?
ah obsolescência da ternura embargada
paludes implorando o galopar do sangue
anoitecido
quando a lua uiva sua solidão lupina
nos ergs hamadas regs da solidão magrebina
estiam-se meus impulsos
calcinados pelo harmatã
quando rufa o tantã do meu coração
poderosa bateria anunciando tua deserção
para lurar-te nas casernas protetoras das convenções
e vais-te embora amor
claudicante amém
violando a liturgia do desejo
na contenção segura de estar antes de ser
longe dos arames farpados das fronteiras
inseguras distantes perigosas fronteiras dos extremos
ali onde explode a dinamite do existir
ali onde as vísceras dialogam com as sílfides
ali onde o toque abissal se faz pureza
e o tocar que me justifica
o tocar razão de ser
bálano em estado de graça
se faz urgência urro clemência
de morte redimida
nos interstícios das galas lúbricas da paixão
onde meu corpo
que o silêncio torna impermeável à vaidade
aguarda a mão
a sagrada mão que afasta a desolação da orfandade
*
*
*
Solidão
Solidão
incisivos cravados na fome de ser amado
sorriso aguado e olhos de peru degolado
shador branco
e unhas negras de terra cavada
para a fossa dos mal-amados
lábios vermelhos de sangue sugado
puta sacana que me engana
nas miragens do deserto do amor
inútil clamor de virtual ternura
Solidão
carente de imaginação
ensaiando farsas periódicas
de sonhos erguidos com os tijolos do querer
tolos milagres da paixão em noites de exaustão
no lusco-fusco do quero-não-quero
das relações voltadas para o leito light
do não compromisso
manipulando a fragilidade do animal apaixonado
e transformando o desejo em pequenas transgressões
com gosto ilusório de vida
Solidão
tetas e bunda de silicone
boceta portátil e pinto de borracha
e sentimentos de PVC
fodendo sem deixar foder aqueles que de ti fogem
na busca de uma pobre foda
foda virtual de patético Peter Pan maduro
travestida de amor
estética chula e gestos bastardos
grotesca Soledade de olhos inchados de insônia
bafo de jacaré empachado
e lassidão amanhecida de bêbado mijado
Solidão
cocaína crack maconha fumo álcool
e noites encharcadas de nadas tilintando no vazio
o amor entre pele e cueca
num sonho daliano
de punhetas espremidas pelos filmes pornôs
derramadas em virtuais crateras lunares
de ausência e mutismo
nos dédalos do não-ser
corpo tocado por outro corpo
olhos que não refletem o mar
de amar o outro
mal-amado
Solidão
asas amputadas
voo suspenso
sonho castrado
vastidão extirpada
Solitude cunhada nos limites
flutuando nos estilhaços da fragmentação
tão indolente que não consegue ser uma
em permanente apenas estar
sem ser da origem ao destino
do equilíbrio ao extremo
um ser
de amém e revolta
entre o silêncio e o estrondo
de viver
*
*
*
As Horas Selvagens
outubro 13, 2013
As Horas Selvagens
Do livro O Deslizar das Horas
Editora Komedi 2008
Sou momento
solto instante fugaz
anjo primitivo
da força bruta de ser
em luta ferrenha
entrega total de macho voraz
êxtase de existir
ancestral
dilacerado
com o morrer a cada segundo
antes de saber ter
o que dizer
*
*
*
Torre de Babel dos sentidos
exacerbados como fomes ancestrais
presas fincadas em vastas carnes
sem sopro de redenção nem perdão
de lutos instigando a urgência do agora
tigres expelindo a energia telúrica
e corcéis mortos no umbral da espera
não espero não
afundar em teu oco
antes que soe o tambor da morte
e desaguar mil vulcões
e descer
tal Orfeu descendo aos domínios de Hades
inferno de sangues e espermas
coagulados em anjos
de gritos feridas e beijos
calçando as botas mágicas
que reduzem as léguas
do não-existir
feito gozo
*
*
*
Onde estás
que não tocas o palpitar do meu desejo
terra grávida do furor de existir?
Onde estás
que não albergas o símbolo candente do querer
quando a lividez da solitude descora a vontade de ser?
Onde estás
que não ouço o canto do amor
no canto maciço que tanto quero florescer?
Onde estás
que me largo nas mãos glaciais de Tânatos
por um mero olhar de Eros não ter?
*
*
*
Cala-te
abre-te
receba-me
de esguichos ruge o prazer
que tua prece
não seja fardo
nem fragilidade
mas apenas gratidão existencial
do gozo
*
*
*
Nada de sentimentalismo novelesco
proponho-te o reino do meu cetro
cru
mastro imperial de veleiro do furor
faro que ofusca a hipocrisia
e o ranço de Cinderela
pois meu querer brota do pico fiel
que não queres receber
*
*
*
Por que preferes o estertor dos anjos
falsos anjos tísicos de não querer
se o júbilo dos demônios
ferve a glória da paixão
nos caldeirões de existir?
vem idiota
vamos foder
*
*
*
Pegue minha mão
alcemos voo ao desconhecido
cruzemos as fronteiras proibidas
ao encontro do sempre
pois o amor torna-nos pássaros eleitos
de mítico sexo nas alturas
na conexão sagrada do superior
bocas selando o pacto divino
mãos guiando o faro do desejo
e percorremos o desafio do ilimitado
iluminado
pela vertigem
vem
curta é a vida e a liberdade mata
e grande é o júbilo que unta nossa pele
vem
entre milhões te achei
vem
contigo venço a morte
vem
põe tua cabeça no meu peito
e dorme
vem
que ainda sou selvagem
e não te conheço
*
*
*
Dar-te-ei
Eu te darei não di più como Vanoni
nem perolas de chuva de países onde não chove como Brel
nem rosas de Nishipur como Khayyam
não não
bem menos te darei
apenas vísceras do querer
quando chegues testando a entrega
fecharei o livro que escrevo
para reescrevê-lo em tua pele
largarei os paraísos artificiais
para voltar à humildade do macho
frágil senhor e escravo que ama
e serei chão bento como o alvor dos tempos
bruto como o amém do urso
e irei contigo onde sempre fui de ser
onde sempre estive só
porque carrego o infante que te darei
que fui que sou
e como água me derramarei em ti
sem pressa nem alvoroço
entre o nogal e o bambu
recompondo os fragmentos do silêncio
quebrado
e te darei o infinito perdão que me dás
entre a misteriosa serenidade da chuva
e a explosão espermática do sol
e te darei raízes perfumadas de tempestades ancestrais
e da cheia do séculos
e me dirás morre para morar em mim
e morrerei em ti
e te darei a arfada do Navio Ébrio de Rimbaud
enquanto gozas
e serei espera do infinito à carne
e sem trégua te direi sou a energia que me dás
vem casar essa fúria
vem ousar fundir-te em mim no espasmo do segundo
e renascer na reinvenção dos milênios
a dois
uno
e como mago destronado do saber
anjo selvagem da vertigem inicial
iniciarei contigo a largada do acoplamento sem fim
entre a aspereza do caminho
e o veludo da violeta velada pele véu da sombra
e da terra ar água e fogo extrairei
a densidade silente de ser teu
claro-escuro do sonho a dois
vem que esguicho vida
quando me injetas o furor de existir
e delirante arribo ao porto do teu corpo
jogando a âncora do meu falo em tuas águas profundas
e tão abstrato quanto o pênis de minha alma
serás tangível
na ponta dos dedos do Tempo
vem entre o estupor da morte
e a translucidez da vida
transpiração da existência
transmigração
e deposita teu robusto sou de gritos e silêncio
vem nesta noite de fumo e cerveja
que enquadra meu uno partido
sem noção da remota metade
vem me acoplar no sideral do desejo
da carne ilimitada
de espasmos da referência
vem que o humano é divino
vem que só estou esta noite
véspera da véspera de Natal
num bar onde vomito no papel
a dilacerante necessidade de amar
no aguardo de renascer em ti
para me redimir
quando te darei em estado puro
a coisa tosca do sangue que não sabe ler
nem raciocinar
apenas amar
mas onde estás que não ouço o orvalho do teu fôlego?
onde estás que minha ânsia não se condensa em um único ser?
onde estás que sangro do pedaço perdido?
onde estás que não matas o anjo para torná-lo homem?
onde estás que não encontro meu nome?
vem
vem dissipar a luz
a luz que fere
a falsa luz
vem para que deixe de ser um simulacro
de ser
Jorge Roldan, Curador de Mostras de Cinema
outubro 2, 2013
Jorge Roldan, Curador de Mostras de Cinema
Assistindo ao ótimo Hannah Arendt, cinebiografia da filósofa alemã, de Margarethe von Trotta, a maior cineasta mulher do mundo, autora, entre outros filmes, de Rosa Luxemburg e Os Anos de Chumbo, somos levados a lembrar-nos da solidez, consistência e coerência da obra da diretora alemã. E, pessoalmente, a recordar meu encontro com essa figura maravilhosa – como profissional e como ser humano – há alguns anos em São Paulo. Pois ela esteve na capital paulista em 2006 para acompanhar a exibição, no CCBB, de sua filmografia completa. Foi Jorge Roldan, curador e produtor de mostras cinematográficas, que a trouxe ao Brasil.
Jorge Roldan, professor de cinema, autor de ensaios publicados em várias revistas especializadas, pesquisador de cinema, foi um admirável exemplo de uma vida dedicada ao estudo não só de determinados filmes e cineastas, mas à própria história da sétima arte. Lendo jornais e revistas, constatamos (pelo menos os cinéfilos de carteirinha) que os novos críticos deixam muito a desejar em termos de conhecimento da história do cinema mundial. Conhecer os grandes vultos da cinematografia internacional, que estão ou estiveram na mídia, como Fellini, Buñuel, Bergman, Almodóvar ou Woody Allen, não significa que se esteja realmente por dentro do cinema desde seus primórdios até os dias atuais. A criatividade de Jorge Roldan como curador de mostras e sua cultura demonstrada em críticas e analises realmente se sobrepõem ao lugar-comum e a modismos.
De fato, este curador e produtor não se limitou, como faz a maioria dos curadores, a oferecer ao publico paulistano – e carioca e brasiliense em alguns casos – o déjà vu, ou seja, o já trilhado inúmeras vezes, como as mostras de cineastas consagrados. Não é que os grandes consagrados pela mídia não mereçam mostras. Não. O que não podemos esquecer é que o cinema não é feito só pelos diretores acima citados ou por outros como Orson Welles, Coppola, Scorsese, Saura, Kurosawa, Visconti, Antonioni, Resnais ou Truffaut. Exatamente como a literatura na Inglaterra não se resume só a Shakespeare, na Espanha a Cervantes, na Rússia a Tolstoi e no Brasil a Machado de Assis.
Entre outras mostras, e além da mostra da obra completa de Margarethe von Trotta, Jorge Roldan trouxe ao Brasil Robert Guédiguian e sua filmografia completa. Guédiguian (que veio com Ariane Ascaride, sua mulher e protagonista de quase todos os seus filmes), como cineasta engajado não poderia deixar de agradar ao curador Roldan, que foi militante durante a ditadura militar. Aliás, graça a este curador, São Paulo foi a única cidade das três Américas que exibiu a obra completa do diretor francês de origem germano-arménia, autor, entre outros filmes, do terrível (no bom sentido) A Cidade Está Tranquila.
Outras mostras importantes deste especialista em Bergman, Kieslowski, Angelopoulos e em cinema noir dos anos 1940/50, foram a do acima citado diretor polonês, a do cinema da Alemanha do nazismo ao pós-guerra, a do cinema social alemão, a do enfoque das drogas pelo cinema espanhol, a do cinema francês pré-nouvelle vague, a do cinema de Yoji Yamada e a mostra Divinas Mulheres, com filmes protagonizados por grandes atrizes como Anna Magnani, Jeanne Moreau e Liv Ullmann entre outras. Como vemos, mostras que fogem ao lugar-comum.
Humanista, extremamente coerente em suas analises sobre cinema, possuidor de vasta cultura cinematográfica, Jorge Roldan, nascido no Marrocos e naturalizado brasileiro, tinha o projeto de trazer Ken Loach (que ele tanto admirava) e sua filmografia e o de reunir todos os seus ensaios num livro. Partiu antes de realizá-los. Ele deixou com seu desaparecimento uma lacuna cultural em São Paulo. A vaga de melhor curador de mostras de cinema da capital paulista ainda não foi preenchida por nenhum outro.
20-09-2013
R.Roldan-Roldan é escritor
Publicado no Correio Popular de Campinas/SP em 1° de outubro de 2013