Copulou? Agradeça a Deus

 

         Não se assuste leitor (devo escrever hypocrite lecteur, como dizia o grande Baudelaire?), não pretendo fazer a apologia do sexo à toa. Como faz a famigerada mídia. Para vender mais. Aliás, as pessoas confundem (ou, hipócritas, querem confundir) a comercialização do sexo e do corpo com a sacralidade do sexo e do corpo. E não querem distinguir a vulgaridade de tudo o que se comercializa (logo, se degrada) daquilo que, superior, se liberta de séculos de ignorância, superstições e repressão. E, aproveitando, repito mais uma vez a “mensagem”: só é digno aquele que se liberta em todos os sentidos. De cordeirinhos e marionetes a serviço de déspotas o mundo está cheio. Aquele que tem coragem de romper com a mesquinhez das convenções, de despojar-se das inutilidades grosseiras do consumo e tornar-se absolutamente livre, obedecendo unicamente a seus valores intrínsecos, esse é superior, logo, digno de respeito. O que, aos olhos da sociedade, pode ser algo pernicioso e até perigoso. A liberdade concede força e superioridade. E a sociedade teme aquele que tem força e superioridade. Cuidado: quando digo força me refiro ao poder da liberdade, não do dinheiro.

Foram o cineasta Werner Herzog, a caverna de Chauvet e o culto dos ancestrais que me levaram ao título deste artigo que, mais do que para a transgressão, tende para a veneração. Obviamente, quando digo veneração não me refiro a formulas explorando mitos, vociferadas por algum picareta, vigarista, charlatão, sacana (e frequentemente ladrão) para a massa ignorante e carente. Por algum bastardo impostor que usa em vão a palavra de Deus para extorquir dinheiro.

O último filme de Herzog, A Caverna dos Sonhos Perdidos, é um documentário que mostra as pinturas rupestres, descobertas em 1994, da caverna de Chauvet, na França. Essas pinturas, de 30 mil anos atrás, são de uma beleza estonteante, indescritível, de cortar o fôlego. De ver para acreditar. E é impossível, perante o deslumbramento causado por tão extraordinária beleza, não mergulhar na imensidão dos milênios. E, ao fio dos séculos, buscar a fonte (onde estaria essa indecifrável fonte?). A perturbadora origem. O ponto inicial no abismo do tempo. E é impossível deixar de pensar que, ao longo das centúrias, homens e mulheres se juntaram, segundo as leis sagradas da Natureza, copularam, procriaram e lutaram bravamente para viver. E assim, século após século, através da cópula, foram transmitindo vida após vida. Como não meditar sobre esses milhões de seres, nossos antepassados desde o alvor dos tempos, que foram engendrando vidas até chegar às nossas? Como não experimentar um profundo sentimento de gratidão e veneração por todos aqueles que operaram, através do coito, o milagre da vida? É, simplesmente, o profundo agradecimento que sinto pelos meus pais, que me deram a vida, extensivo a todos aqueles que os precederam até chegar a mim. O milagre da vida. O sentido metafísico, sagrado da vida. O milagre de ter nascido. O milagre de existir graças ao ato carnal entre um homem e uma mulher. E eu, humildemente, me inclino perante a vida e, consequentemente, perante o sexo. Certamente o que aqui estou expondo tem muito a ver com o culto dos ancestrais de algumas religiões (ou caberia neste caso melhor o termo culturas?) orientais como o xintoísmo. Apesar de que em mim esse sentimento – pois não há dúvida que é um sentimento e não uma crença ou uma tese – provêm do instinto, por assim dizer, embora me considere um homem racionalista. Cabe ressaltar que um místico não é necessariamente religioso. O deus Rimbaud era um místico a seu modo. Um místico selvagem, em estado bruto. E totalmente antirreligioso.

Isto posto, como posso eu, racionalmente, admitir que alguém obtuso, retrogrado, aproveitador, fascista ou fanático pregue a cretinice de que sexo é pecado? Como posso admitir que esse aberrante conceito judaico-cristão-islâmico ainda sobreviva no século 21 para promover a violência da abstinência sexual? Todos sabemos – ou deveríamos saber – que a sexualidade reprimida tende, via de regra, para a perversidade. As pessoas deveriam agradecer a Deus depois do ato sagrado da copula em vez de, como fazem cretinamente algumas seitas, pedir perdão ao parceiro, o que, além de ridículo, é hipócrita. Sim, agradecer como alguns ainda agradecem o alimento antes das refeições. É preciso ser muito burro, tapado, atrasado ou ignorante para não entender isso.

E, para finalizar, voltando à beleza das pinturas rupestres da caverna de Chauvet, é preciso, repetindo os mesmos adjetivos, ser muito burro, tapado, atrasado ou ignorante, além de mercenário, para afirmar que a arte não serve para nada. Esses cretinos, débeis mentais, esses pragmáticos que se acham avançadinhos se esquecem de que se o Homem já pintava na pedra há 30 mil anos, como o demonstram, além da caverna de Chauvet, as cavernas de Altamira, na Espanha, e de Lascaux, na França, é por algum motivo. A Arte (com maiúscula) é algo inerente ao ser humano, o único ser do planeta Terra que a pratica. A Arte emana do lado mais elevado, mais espritual do nosso ser. Assim como o Amor (com maiúscula) é também intrínseco do ser humano. E a Arte é tão sagrada quanto o Sexo (com maiúscula), que inclui a Natureza. O resto é atraso. Medievalismo. Mitos decadentes. Ou cegueira.

 

28-01-2012

 

R.Roldan-Roldan é escritor

www.davidhaize.wordpress.com

Publicado no jornal Correio Popular de Campinas dia 6 de março de 2012