35 Milhões de Escravos

janeiro 7, 2015

35 Milhões de Escravos
Qual é a relação entre “Mas àquele que dá sem que você possa devolver, ofereça todo o ódio do seu coração”, frase polêmica e emblemática dita por um personagem da peça “O Diabo e O Bom Deus”, de Sartre, o filme “Dogville”, de Lars von Trier, melhor e mais consternador filme da década de 2000 e os 35,8 milhões de escravos no mundo? Simples. A frase de Sartre é a síntese do neoliberalismo. Ou seja: vou lhe emprestar, mas você jamais conseguirá me pagar, o que o tornará meu escravo. Em outras palavras: o neoliberalismo é excelente para explorar o próximo e perpetuar um sistema de divisão de classes sociais, uma aberração que data da época dos faraós. E os neoliberais têm a petulância de se acharem moderninhos. Ridículo. Na contundente metáfora de Dogville, obra arrasadora em termos de crítica (e revolucionária na forma), a protagonista, Grace Mulligan (Nicole Kidman) pede emprestado e se torna escrava – inclusive sexual – de uma cidadezinha. O controverso Lars von Trier sugere a destruição da comunidade (o Sistema), portanto a aniquilação da Cobiça. Há lógica e bom senso, sem dúvida. Algo está corrompido pela ganância, algo está podre, e tem de ser destruído. E trocado. Trocar. Mudar. Renovar constantemente. Isso nos leva a outra frase emblemática e polêmica. O grande poeta René Char diz: “Aquilo que vem ao mundo para nada perturbar, não merece nem respeito nem paciência”.
São 35,8 milhões de escravos no mundo de acordo com o Índice de Escravidão Global da organização Walk Free Foundation. Cinco países (Índia, China, Paquistão. Uzbequistão e Rússia) concentram 61% das pessoas escravizadas. Desse total 10% são traficados para o exterior e o resto é mantido em cativeiro dentro do próprio país para trabalho forçado e 25% para exploração sexual. As mulheres são as vítimas mais afetadas já que a maioria sofre abusos sexuais mesmo quando traficadas para outro objetivo. Depois da Europa, o continente americano é a região com menor número de escravos (3,6%). O Brasil está entre os trinta países com menor índice de escravatura por habitante, mas ocupa o 32° lugar – no ranking de 167 nações – com mais de 167 mil pessoas vivendo em condições de escravos, pior que a África do Sul e pior que a maioria dos países da América Latina, como Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Venezuela.
Segundo o pesquisador Kevin Bales, responsável pelo estudo, de acordo com os pesquisadores a escravidão moderna está ligada à padronização do sistema financeiro global que permite a transferência de capital para outros países onde a mão de obra é mais barata e onde as leis são mais brandas ou inexistentes. Assim, bandidos acobertados pelo sistema global, passaram a movimentar com mais facilidade não só o dinheiro e as drogas, mas seres humanos para atender a essa demanda criminosa.
A miséria leva milhões de pessoas a trabalhar em troca de comida e moradia. “O desespero e a fome aumentaram esse tipo de mão de obra. São pessoas que não valem nada, do ponto de vista do traficante, porque é mais barato simplesmente comprar outra pessoa do que “recuperar” aquela (em caso de doença, por exemplo), então as condições de vida dadas a essas pessoas é terrível e se elas não suportam o trabalho são simplesmente trocadas. A extrema pobreza, a guerra e as condições climáticas tornam as pessoas presas fáceis da escravidão, como é o caso dos imigrantes ilegais e refugiados.
Considera-se escravo aquela pessoa que pertence a alguém ou a algum grupo que tem controle sobre a sua movimentação. Ela é tratada como propriedade e privada de liberdade por meio de coerção e violência, com o objetivo de explorá-la. Por sinal – mais uma “conquista” da globalização e do neoliberalismo – o número de pessoas escravizadas cresceu 20% em relação aos 29,8 milhões em 2013. Como vemos, o vergonhoso sistema neoliberal é um paraíso. Para os grupos corporativos que exploram o próximo. E isso, para a humanidade, é uma vergonha fomentada pelo terrorismo do capital.
21-12-2014
R.Roldan-Roldan é escritor
http://www.davidhaize.wordpress.com
Publicado no Jornal “Correio Popular” de Campinas/SP em 6 de janeiro de 2015