Súplica da Libertação

agosto 5, 2015

Súplica da Libertação

Para a minha filha Ljudmila Alexandra, que me inspirou esta súplica

Pai, liberte-me por você ter sido militante, preso político e por ter fugido da prisão para não ser fuzilado, deixando a minha mãe e a mim para se refugiar em outro país, pai.
Pai, liberte-me do exílio, por termos vivido, como refugiados políticos apátridas, durante dez anos, presos numa cidade-estado, pai.
Mãe, liberte-me por ter visto a tua filha, minha irmã, agonizar e morrer em teus braços por falta de atendimento, mãe.
Mãe, liberte-me por ter-me escondido num navio, longe de você e do meu pai, num navio que me levaria a outro país, a outro continente, mãe.

Mãe, liberte-me por você ter fugido, sozinha, sem teu marido, sem teu filho, da perseguição política, escondida no porão de um navio de pesca que te levaria a outro país.
Mãe, liberte-me por ter, escondida na calada da noite, ordenhado uma das cabras do patrão para me dar leite, porque uma criança precisa de leite e porque não havia leite em casa, mãe.
Mãe, liberte-me por você ter confeccionado cuecas samba-canção para o meu pai com tecido de sacos de farinha, porque você não tinha dinheiro para comprar cuecas para o meu pai, mãe.
Mãe, liberte-me por ter-me remendado meias, calças e camisas porque você não tinha dinheiro para me comprar roupa nova, mãe.
Mãe, liberte-me por eu andar de sapatos furados porque você não tinha dinheiro para me comprar um par de sapatos novos, mãe.
Mãe, liberte-me por você lavar, enquanto eu dormia, a única calça que eu tinha, pois como eu tinha crescido, as outras calças já não serviam, mãe.
Mãe, liberte-me por termos jantado apenas uma sopa rala de ovo, ou de patas de galinha ou de cabeças de peixe e um pedaço de pão porque não havia outra coisa para comer, mãe.
Mãe, liberte-me por ter me dado um tomate com sal de lanche porque não havia outra coisa para comer, mãe.
Mãe, liberte-me por ter caçado pombas, que entravam em casa, para fazer uma canja porque não havia muita coisa para comer, mãe.
Mãe, liberte-me por você chorar por não poder mais comprar fiado na mercearia do marido de tua prima, que te negou o crédito porque você devia muito.
Mãe, liberte-me por você chorar por não saber o que ia fazer para comer no dia seguinte, pois o dinheiro não dava para comprar nada, mãe.
Pai, liberte-me por eu ter vendido jornais velhos porque você estava desempregado, pai.
Pai, liberte-me por eu ter catado ferro velho para vender no depósito de sucata porque você estava desempregado, pai.
Pai, liberte-me por eu ter catado madeira para trocá-la por doces velhos na panificadora porque eu não tinha dinheiro para comprar doces frescos, pai.
Pai, liberte-me por eu levar para casa frutas meio estragadas que ganhava do dono da mercearia onde, menino, trabalhava.
Pai, liberte-me por ter-me feito uma incisão com lâmina de barbear no dedão do meu pé que estava cheio de pus porque você não tinha dinheiro para me levar ao médico, pai.
Pai, liberte-me por termos sido despejados por não poder pagar o aluguel e por termos ido morar num galpão cujo telhado estava mais furado que uma peneira, pai.
Pai, liberte-me por eu ter tido que deixar a escola aos 12 anos para trabalhar porque não havia o que comer em casa, pai.
Pai, liberte-me por eu, escritor, ter perdido duas vezes a língua, por ter perdido duas vezes o país, por ter perdido as raízes, por ter perdido as referências, por ter vivido dois exílios, pai.
Pai, mãe, onde quer que vocês estejam, tão longe no tempo, tão presentes em meu coração, libertem-me dessa tristeza que carrego desde criança, pai, mãe.
E, pai, mãe, obrigado por ter me dado algo tão maravilhoso, tão insuperável, tão imenso quanto a vida. E obrigado por ter-me transmitido tanta dignidade e nobreza.
31-07-2015