O Escritor Maldito

junho 8, 2014

O Escritor Maldito
Fala-se muito em escritor maldito. O que é um escritor maldito? Aquele que passa a vida inteira esperando ser reconhecido e que só o é após a morte? Aquele que vive com um pé na marginalidade – roubos e homicídios – como François Villon e Jean Genet? Aquele que, por seu comportamento, desafia as normas sociais e atrai a ira dos burgueses bem-comportados, como é o caso do homossexualismo de Oscar Wilde, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine ou o do satanismo e ópio de Charles Baudelaire? Aquele que, pelo conteúdo de sua obra e pelo enigma de sua existência acaba estigmatizado pelo destino insólito, como no caso de Lautréamont? O termo maldito em literatura é bastante abrangente. O escritor maldito pode ser tudo o acima exposto, ou em parte. Aliás, a expressão escritor maldito (ou mais especificamente poeta maldito) foi cunhada por Verlaine.
Temos Villon e Genet, ambos envolvidos em latrocínios e assassinatos. A homossexualidade de Wilde, seu processo, condenação e encarceramento. Mas Wilde, consagrado em vida, pode ser considerado um escritor maldito? Vejamos Verlaine, dilacerado entre o amor por Rimbaud e pela mulher e o filho e afundado em álcool. Olhemos Rimbaud, o mais brilhante, alucinante, fascinante. perturbador de todos os malditos, que percorreu o mundo e acabou como traficante de armas na Abissínia, depois de ter produzido sua obra poética na adolescência e te ter renegado a poesia posteriormente. Rimbaud, que amou Verlaine que atirou nele e o feriu. Rimbaud, um dos maiores bardos do mundo que, já naquela época, um século antes dos hippies e de Castañeda (datado e esquecido hoje em dia), pregava o desregramento dos sentidos para atingir a dimensão de vidente. Rimbaud, que odiava burguês e religião. Rimbaud, o místico selvagem, o deus que ousava na literatura e na vida, que chocava os limitados bem-pensantes. O Rimbaud sujo e com piolhos, que só depois de morto teve sua grandeza reconhecida – e nisso Verlaine desempenhou um papel importante. E temos Lautréamont (Isidore Ducasse), o poeta sem rosto e sem túmulo, que copulava com um tubarão nos abismos de Maldoror. E há ainda o grande Sá-Carneiro, o maior poeta da língua portuguesa depois de Camões, que se suicidou aos 26 anos. E sua conterrânea, Florbela Espanca, que pôs fim à sua vida no dia em que completava 36 anos e que dizia que o amor de um homem não lhe bastava, já que o que ela precisava era do amor de um deus – de um deus, e certamente não de Deus.
E passemos ao Brasil. Três escritores brasileiros (especificamente dois poetas e um escritor) podem ser considerados malditos. Ou pelo menos têm elementos malditos, apesar de terem tido reconhecimento em vida.
João da Cruz e Sousa nasce em Nossa Senhora do Desterro (hoje Florianópolis) em 1861 e morre em Curral Novo (atual Antônio Carlos/MG) em 1898. Filho de escravos alforriados, é educado pelos ex-senhores, o marechal Guilherme Xavier de Sousa e sua esposa Clarinda, aprendendo francês, latim e grego. Casa-se, em 1893, com Gavita Gonçalves, negra, com quem tem quatros filhos. Um dos precursores do simbolismo no Brasil, o Dante Negro ou o Cisne Negro como era chamado, o único poeta negro do País, autor entre outros de Broqueis e Missal, teve uma vida extremamente trágica. Perdeu os quatros filhos prematuramente, de tuberculose, a mulher enlouqueceu e ele faleceu, também de tuberculose, aos 36 anos.
Samuel Rawet nasce em Klimontow, Polônia, em 1929 e morre em Brasília em 1984. Contista, dramaturgo, ensaísta e arquiteto (participou das obras de construção de Brasília), chega ao Brasil com seus pais em 1936 e passa a infância e adolescência no Rio. Considerado um marco no conto brasileiro, teve reconhecimento em vida. Arredio e solitário, foi-se afastando progressivamente dos meios literários, sendo obrigado a bancar seus últimos livros (para o que teve de vender bens) que foram publicados fora do main stream editorial. Autor, entre outros, de Os Sete Sonhos, acabou demente e foi encontrado morto em sua casa.
Orides de Lourdes Teixeira Fontela nasce em São João da Boa Vista/SP em 1940 e morre em Campos do Jordão em 1998. Filha única de pais pobres e analfabetos, forma-se em filosofia na USP. Solitária (não tem parentes próximos), agressiva, áspera, de temperamento difícil, depressiva e doente, vive deslocada, sem senso prático para a vida. Nos últimos anos de sua existência, é despejada do apartamento e passa a viver na Casa do Estudante, em São Paulo. Autora de Teia, entre outros, sua assombrosa poesia é um abismo metafísico de concisão. Embora reconhecida academicamente, morre na miséria e quase é enterrada como indigente.
Abençoados sejam os escritores malditos, pois eles são superiores.
26-05-2014
R.Roldan-Roldan é escritor
http://www.davidhaize.wordpress.com
Publicado pelo jornal Correio Popular de Campinas/SP dia 3 de junho de 2014