Elia Kazan, Admiração e Desprezo

            Maioria é burra. Mesmo porque a humanidade é atrasada. Unanimidade é sinônimo de imbecilidade? Via de regra é. Mas há exceções, claro. Cervantes é o maior romancista de todos os tempos. Unanimidade? Sim. Shakespeare é o maior dramaturgo de todos os tempos. Unanimidade? Sim. Picasso é o maior artista plástico de todo o século XX. Unanimidade? Sim. Porém, não deixa de ser curioso que certas unanimidades – ou quase – têm máculas que, no entanto, não a tiram de seu pedestal. Ou seja, podemos admirar uma pessoa ou uma obra mesmo conscientes de que essa pessoa ou obra deixe muito a desejar. Isso é bastante comum na literatura e na arte em geral.

Sim, há grandes vultos nas Letras e nas artes que suscitam nossa admiração, mas que nos causam certo desconforto, por assim dizer, provocado por um posicionamento político, ético ou moral.Vejamos alguns exemplos. O escritor Louis-Ferdinand Céline era abertamente um antissemita. O poeta Ezra Pound era um fascista declarado, admirador de Mussolini. Borges era simpatizante das ditaduras do Cone Sul. O pintor Dalí era franquista. E o cineasta norte-americano de origem grega Elia Kazan era um delator.

De fato, vergonhosamente, o grande Elia Kazan foi um delator. E ficou com o estigma de delator até a morte em 2003, aos 94 anos. E mesmo depois da morte. O que não diminui o valor de sua obra. Eu, pessoalmente, sinto-me divido entre a admiração e o desprezo (e o desprezo é mais inteligente que o ódio) quando vejo ou revejo alguma de suas obras. Seu último filme, O Último Magnata (1976), recentemente exibido na TV paga, leva-nos mais uma vez a refletir sobre sua obra e sua atitude pessoal em relação aos outros.

Kazan, diretor de grandes longas como Terra do Sonho Distante, Sindicato de Ladrões, Vidas Amargas, Uma Rua Chamada Pecado e Viva Zapata! entre outros, colaborou com a caça às bruxas do macarthismo, ou seja colaborou com o Comitê de Atividades Antiamericanas, denunciando colegas comunistas ou simpatizantes do comunismo. Vale a pena citar, já que estamos falando de cinema, que grandes nomes de Hollywood, cineastas e roteiristas, tiveram suas carreiras destruídas ou tiveram de exilar-se. Como é o caso, entre muitos outros, do grande diretor Joseph Losey e do grande roteirista Dalton Trumbo, que por sinal fez um único filme como diretor, o perturbador e angustiante Johnny Vai à Guerra, o maior libelo antibelicista da história da sétima arte.

O mais interessante é que Kazan não era nenhum reacionário, nenhum fascista. Seus filmes, pelo menos na fase inicial, refletem uma inquietação social (logo política) onde fica clara sua simpatia pelos despossuídos, pelos deserdados, pelos menos favorecidos da sociedade. Certamente ele não era o protótipo do reacionário hollywoodiano como o John Wayne de O Alamo. Então o que levou Kazan a um ato tão desprezível? A propaganda capitalista norte-americana? A paranoia norte-americana em relação ao comunismo? Ou simplesmente o pragmatismo de denunciar para salvar sua carreira e não cair no ostracismo? O curioso é que, até a morte, ele declarou que não se arrependia de sua denúncia. É óbvio que Kazan não tinha o discernimento necessário para entender que ser comunista não significava necessariamente ser stalinista ou maoísta. Claro, era a época da Guerra Fria. Mas mesmo assim. Esse homem, autor de uma obra tão humana e respeitável, não teria o distanciamento requerido, a lucidez para avaliar a dimensão real do mundo? Talvez não. Exatamente como muitos intelectuais e artistas de hoje em dia não percebem que o pragmatismo do neoliberalismo é claramente a ditadura do capital. Isso é um fato. E há fatos que requerem tempo para serem compreendidos e vistos em sua verdadeira dimensão.

E como toquei em comunismo e em preconceitos políticos, termino o artigo como o comecei. Pela burrice (ou ignorância?). A burrice que impede um pobre cretino de entender que é preciso um determinado coeficiente intelectual, uma autêntica elevação ética e uma moral sólida para ser ateu, já que o ateu não usa as muletas de Deus, já que o Bem tem de brotar de dentro de si e não de fora. Ou seja, não por temor a Deus, mas por princípio. A burrice (ou ignorância?) que impede um analfabeto com formação superior de entender que o consumismo é puro fascismo para manipular as massas. A burrice (ou ignorância?) que desconhece o que significa a prioridade absoluta da liberdade de pensamento. A liberdade de não querer nada, o que é um pecado capital no contexto consumista do deus Dinheiro, idolatrado por toda uma sociedade que se diz religiosa. Ou quase.

23-07-2014

R.Roldan-Roldan é escritor

  1. davidhaize.wordpress.com

Publicado no jornal “Correio Popular” de Campinas/SP em 5 de agosto de 2014

 

 

 

 

 

 

Elia Kazan, Admiração e Desprezo

            Maioria é burra. Mesmo porque a humanidade é atrasada. Unanimidade é sinônimo de imbecilidade? Via de regra é. Mas há exceções, claro. Cervantes é o maior romancista de todos os tempos. Unanimidade? Sim. Shakespeare é o maior dramaturgo de todos os tempos. Unanimidade? Sim. Picasso é o maior artista plástico de todo o século XX. Unanimidade? Sim. Porém, não deixa de ser curioso que certas unanimidades – ou quase – têm máculas que, no entanto, não a tiram de seu pedestal. Ou seja, podemos admirar uma pessoa ou uma obra mesmo conscientes de que essa pessoa ou obra deixe muito a desejar. Isso é bastante comum na literatura e na arte em geral.

Sim, há grandes vultos nas Letras e nas artes que suscitam nossa admiração, mas que nos causam certo desconforto, por assim dizer, provocado por um posicionamento político, ético ou moral.Vejamos alguns exemplos. O escritor Louis-Ferdinand Céline era abertamente um antissemita. O poeta Ezra Pound era um fascista declarado, admirador de Mussolini. Borges era simpatizante das ditaduras do Cone Sul. O pintor Dalí era franquista. E o cineasta norte-americano de origem grega Elia Kazan era um delator.

De fato, vergonhosamente, o grande Elia Kazan foi um delator. E ficou com o estigma de delator até a morte em 2003, aos 94 anos. E mesmo depois da morte. O que não diminui o valor de sua obra. Eu, pessoalmente, sinto-me divido entre a admiração e o desprezo (e o desprezo é mais inteligente que o ódio) quando vejo ou revejo alguma de suas obras. Seu último filme, O Último Magnata (1976), recentemente exibido na TV paga, leva-nos mais uma vez a refletir sobre sua obra e sua atitude pessoal em relação aos outros.

Kazan, diretor de grandes longas como Terra do Sonho Distante, Sindicatos de Ladrões, Vidas Amargas, Uma Rua Chamada Pecado e Viva Zapata! entre outros, colaborou com a caça às bruxas do macarthismo, ou seja colaborou com o Comitê de Atividades Antiamericanas, denunciando colegas comunistas ou simpatizantes do comunismo. Vale a pena citar, já que estamos falando de cinema, que grandes nomes de Hollywood, cineastas e roteiristas, tiveram suas carreiras destruídas ou tiveram de exilar-se. Como é o caso, entre muitos outros, do grande diretor Joseph Losey e do grande roteirista Dalton Trumbo, que por sinal fez um único filme como diretor, o perturbador e angustiante Johnny Vai à Guerra, o maior libelo antibelicista da história da sétima arte.

O mais interessante é que Kazan não era nenhum reacionário, nenhum fascista. Seus filmes, pelo menos na fase inicial, refletem uma inquietação social (logo política) onde fica clara sua simpatia pelos despossuídos, pelos deserdados, pelos menos favorecidos da sociedade. Certamente ele não era o protótipo do reacionário hollywoodiano como o John Wayne de O Alamo. Então o que levou Kazan a um ato tão desprezível? A propaganda capitalista norte-americana? A paranoia norte-americana em relação ao comunismo? Ou simplesmente o pragmatismo de denunciar para salvar sua carreira e não cair no ostracismo? O curioso é que, até a morte, ele declarou que não se arrependia de sua denúncia. É óbvio que Kazan não tinha o discernimento necessário para entender que ser comunista não significava necessariamente ser stalinista ou maoísta. Claro, era a época da Guerra Fria. Mas mesmo assim. Esse homem, autor de uma obra tão humana e respeitável, não teria o distanciamento requerido, a lucidez para avaliar a dimensão real do mundo? Talvez não. Exatamente como muitos intelectuais e artistas de hoje em dia não percebem que o pragmatismo do neoliberalismo é claramente a ditadura do capital. Isso é um fato. E há fatos que requerem tempo para serem compreendidos e vistos em sua verdadeira dimensão.

E como toquei em comunismo e em preconceitos políticos, termino o artigo como o comecei. Pela burrice (ou ignorância?). A burrice que impede um pobre cretino de entender que é preciso um determinado coeficiente intelectual, uma autêntica elevação ética e uma moral sólida para ser ateu, já que o ateu não usa as muletas de Deus, já que o Bem tem de brotar de dentro de si e não de fora. Ou seja, não por temor a Deus, mas por princípio. A burrice (ou ignorância?) que impede um analfabeto com formação superior de entender que o consumismo é puro fascismo para manipular as massas. A burrice (ou ignorância?) que desconhece o que significa a prioridade absoluta da liberdade de pensamento. A liberdade de não querer nada, o que é um pecado capital no contexto consumista do deus Dinheiro, idolatrado por toda uma sociedade que se diz religiosa. Ou quase.

23-07-2014

R.Roldan-Roldan é escritor

  1. davidhaize.wordpress.com

Publicado no jornal “Correio Popular” de Campinas/SP em 5 de agosto de 2014