De Favelado a Empresário a Favelado

 

 

Cada um tem tantos direitos,

 segundo o poder que tem.

Spinoza

 

 

Ao Homem Negro

 

 

Barros*

Não dou entrevistas.

Repórter

Por favor, só umas perguntas.

B

Não. Não dou entrevistas.

R

Eu tenho a maior admiração pelo senhor. Sou novo no emprego e gostaria de ter essa chance. Além do mais sou negro, como o senhor.

B

Tudo bem, entre. Você tem só quinze minutos. Não tire fotos nem de mim nem da casa. Nem cite meu nome nem endereço. Nem sequer o bairro. E não faça referências aos membros de minha família.

R

Entendido e prometido. Vou ser objetivo e direto já que o senhor só me concede quinze minutos. O senhor, que foi um homem rico, não se sente um tanto deslocado na favela?

B

Absolutamente não. Foi uma opção retornar às origens. Quanto ao rótulo de homem rico, gostaria de frisar que não era nenhum bilionário.

R

Essa decisão de nível socioeconômico não o incomoda?

B

Acabo de lhe dizer que não.

R

O senhor nasceu na favela. Começou a trabalhar ainda criança ajudando seu pai com o carreto, que era o sustento da família. Recém-saído da adolescência, o senhor, com a ajuda do seu pai, comprou um caminhão velho e começou a trabalhar por conta própria. Foi prosperando. E estudando. Juntou uma pequena frota de caminhões. Formou-se em administração de empresas. A firma continuou crescendo. O senhor fez mestrado e, posteriormente, doutorado. A pequena empresa de transporte tornou-se uma grande empresa. A que o senhor atribui seu sucesso?

B

Ao trabalho. À disciplina. À persistência.

R

Uma vez no topo da carreira de empresário, o senhor decide largar tudo, por assim dizer. O que o levou a tal decisão?

B

A consciência.

R

A consciência de quê?

B

A consciência é algo muito abrangente. Depois do doutorado, passei a ler muito. Mas aí não eram mais livros sobre gestão empresarial e economia. Mas obras sobre sociologia, história, antropologia e filosofia. Ou seja, humanismo. E minha mente foi se abrindo para um mundo além dos limites do que tinha estudado para minha profissão. E percebi o quão pequeno e restrito era meu mundo de empresário. E também o quanto era egoísta esse meu mundo.

R

Dessas leituras, que escritores o marcaram?

B

Muitos. Chomsky, Spinoza e Freud, entre outros.

R

Curiosamente, os três autores citados são judeus.

B

Não julgo os escritores pela etnia, mas pelas suas ideias, por aquilo que eles escrevem. Sou um admirador da cultura judaica, mas certamente não do Estado de Israel.

R

O senhor disse que seu mundo era egoísta.

B

O neoliberalismo é um sistema injusto que favorece os que já têm muito em detrimento dos que têm pouco. Eu fazia parte desse sistema.

R

É um enfoque de esquerda.

B

Digamos que a palavra esquerda está um tanto datada. Mas a visão e atitude radicais e obviamente limitadas da grande maioria dos neoliberais impedem que eles percebam que a verdadeira esquerda hoje em dia é o humanismo. Mas esses cavalheiros retrógrados, exímios mercadores sedentos de dinheiro e bitolados pelos milagres da economia neoliberal, e que curiosamente se dizem democratas, continuam associando a esquerda ao stalinismo e maoísmo. O que é pura ignorância.      

R

Sua decisão foi então política?

B

No fundo, tudo é político na vida. Tudo é um ato político. Desde comprar determinados produtos até votar em determinado candidato. Mas além do aspecto sociopolítico em que eu estava inserido, dentro de uma determinada classe social, claro, havia o aspecto existencial, por assim dizer. Quanto mais lia, quanto mais abria horizontes, quanto mais racionalizava, mais me dava conta de que algo essencial me faltava, de que algo não fazia sentido na vida de homem abastado que levava. Algo me pesava. E eu sentia a necessidade de uma vida mais leve, mais solta, que só o despojamento poderia me trazer. E aí fui me desfazendo dos meus bens. Fui passando praticamente tudo para meus filhos, com exceção do que doei. Até me sentir em paz comigo mesmo e com a vida. Quando envelhecemos, queremos retornar às raízes. E eu quis voltar à simplicidade do início da minha existência.

R

O senhor foi rotulado de ermitão, de recluso, de misantropo depois da publicação de seu livro sobre a decisão de romper com tudo.

B

Não sou ermitão nem recluso nem misantropo, já que me relaciono com a comunidade da favela.

R

O senhor também foi acusado de radical em relação ao sistema vigente.

B

Talvez seja porque não aceite de modo algum a desigualdade social, a discriminação social perante a Justiça, em uma palavra, a injustiça social. E porque tenha dito e escrito que não sou nenhum imbecil para passar a vida trabalhando para ficar cada vez mais rico. Isso não faz sentido. Mesmo porque o fim é a morte. E a existência tem de ser usufruída antes que ela acabe. Devemos dedicar um tempo para sentir a vida e não fazer com que a vida nos atropele. A correria, a pressa, a ansiedade de ganância chegam a se tornar totalmente absurdas. E certamente não respondem a nossa indagação: o que fazemos neste mundo?

R

O senhor também foi tachado de racista em relação aos brancos em sua defesa da causa dos negros.

B

Não sou racista, mas defendo os direitos do homem negro. Sempre houve racismo neste País, muitas vezes camuflado pelo paternalismo. O negro não quer favores. O negro quer o que lhe pertence, ou seja, o que lhe é de direito, como qualquer cidadão, seja qual for a etnia desse cidadão. O negro tem de afirmar e assumir sua negritude em vez de seguir os valores brancos. O modelo do negro é africano e não europeu. O negro é tão inteligente, capaz e bonito quanto o branco. Isto não é proselitismo. São fatos. Apenas temos de admitir que determinadas conquistas sociais só foram alcançadas com um certo radicalismo. Basta ler a História para se convencer disso. Aqueles que detêm os privilégios nunca querem ceder. Logo, se eles recusam o diálogo, a luta é necessária, por todos os meios.

R

Quando começou a sua conscientização de homem negro?

B

Quando criança, achava que tudo o que era dos brancos era mais bonito. Desde o aspecto físico até as roupas e as moradias. Tinha complexo pelo fato de ser negro, pois às vezes me sentia humilhado por meninos brancos, que me chamavam de macaco ou carvão. Quando me tornei adolescente, percebi que as coisas não eram bem assim. Que, na realidade, era uma questão de faixa social. Os negros eram sempre os mais pobres e não podiam ostentar o que ostentavam os brancos. Veio-me, embora inconscientemente naquela época, uma espécie de revolta que canalizei para o trabalho a fim de ganhar dinheiro e me igualar aos brancos. E assim comecei a galgar os degraus na minha vida profissional – sem esquecer os estudos, que sabia serem imprescindíveis. Mas minha conscientização de homem negro (no sentido de ação) se deu na maturidade, por volta dos 40 anos, depois de ter lido muito e esgotado como insipiente (para não dizer perverso) o modelo de vida que adotara. Uma forma de viver que não me satisfazia. No fundo, minhas conscientizações sociais, políticas, raciais e existenciais estavam intimamente entrelaçadas. Eram uma só: a consciência.

R

Algumas pessoas viram no seu despojamento uma busca de Deus.

B

Não foi exatamente a busca de Deus. Mas o despojamento do conceito de Deus. Ou seja, Deus isento das trevas, travas, preconceitos, superstições e mitos da religião que, em certos casos, é um atentado à dignidade humana. O caminho da pureza começa pelo despojamento. Buda é um exemplo disso. O consumo exacerbado, por exemplo, não só imbeciliza como entope os canais da percepção, da sensibilidade e da inteligência.

R

O senhor era de família neopentecostal e largou sua igreja. Por quê?

B

Porque aos poucos fui me conscientizando de que não podia fazer parte de uma igreja, ou comunidade, que limita a liberdade, o conhecimento, a expansão do saber humano e que, portanto, castra a evolução intelectual do Homem. Isso sem mencionar a intolerância e a doutrinação da alienação absoluta, não só sociopolítica. Os negros, por exemplo, são presas fáceis do fanatismo neopentecostal pelo fato de eles serem pobres e ignorantes. E com o tempo passei a desenvolver uma verdadeira aversão pelo fanatismo religioso. Enfim, foi uma época em que comecei a racionalizar tudo. E a elevar a Razão ao seu mais alto grau. A Razão, que é um sinal de inteligência e de elevação espiritual.

R

O senhor escreveu que alienar o povo em nome da religião é um crime social.

B

Sim, escrevi. E continuo a afirmá-lo. Se os fundamentalistas fazem propaganda, o Estado deveria fazer propaganda contra o fundamentalismo.

R

Algumas pessoas na favela o consideram um sábio, um guru ou mesmo um santo.

B

As pessoas simples falam. Mas não é bem assim. Faço trabalhos voluntários e ajudo os moradores da favela na medida do possível. Porém, não sou nem sábio, nem guru e menos ainda santo. Aliás, diga-se de passagem, que sempre desconfiei de sábios, gurus e santos. Sou apenas um homem que viveu muito, trabalhou muito e cresceu intelectual, ética e espiritualmente para chegar à essência do viver. Ou, mais explicitamente, para dar um norte a esse viver.

R

Como é o relacionamento com sua família depois da grande ruptura em sua vida?

B

Digamos que cordial. Mas distante. Com exceção de minha filha, que vem me visitar regularmente, meus outros três filhos homens raramente aparecem por aqui. Têm vergonha de ver o pai morando numa favela. Todos eles estão casados e bem de vida e vivem num meio social onde é difícil admitir que o pai more numa favela.

R

Isso o entristece?

B

Não. Mesmo porque posso entender o que sentem três dos meus quatro filhos. Eu não sou um caso comum. Logo, não posso esperar que os outros me aceitem como sou. Via de regra, as pessoas não gostam daquilo que escapa do modelo padrão. Não se sentem confortáveis com aquilo que é diferente. As pessoas, de modo geral, acham que sou um louco ou um rico extravagante.

R

E suas ex-mulheres?

B

Fui casado três vezes. Com a primeira mulher tive dois meninos. Com a segunda, uma menina. E com a terceira, um menino. A primeira é a única com a qual ainda me relacionou cordialmente. A primeira é negra. As outras duas, brancas. Fui feliz com todas elas e não guardo nenhum ressentimento – mesmo porque fui eu que pedi a separação nos três casos.

R

Uma de suas ex-esposas o acusou de machista e sexista.

B

É a opinião dela. Certas feministas agem como quem derruba uma ditadura de direita para instaurar uma ditadura de esquerda.

R

Sem querer invadir sua privacidade, o senhor tinha fama de Don Juan. Nas entressafras, teve casos com mulheres belíssimas.

B

Eu era jovem, bem apessoado, deslumbrado, tinha dinheiro, muita saúde e muita vontade de viver, de gozar a vida. Portanto, era natural o que fazia. Em suma, vivi intensamente, mesmo porque sou hedonista. Ainda bem. Hoje, mesmo que voltasse a ser jovem e abastado, não agiria dessa forma. Ou não sei. Talvez agisse. Cada fase de nossa vida tem suas características. Não podemos voltar no tempo achando ingenuamente que seriamos capazes de viver a juventude com a experiência adquirida na maturidade – aliás, isso soaria falso. O figo fresco tem um sabor, o figo seco tem outro sabor. Na mocidade, as chamas. Na maturidade, as brasas. Não me arrependo de nada do que fiz. E posso dizer que tampouco me arrependo de nada do que não fiz. Mesmo porque nunca deixei de fazer o que queria fazer. De certo modo, sempre tive um sentimento de urgência, como se eu não devesse deixar para amanhã o que podia ser alcançado hoje. Talvez pelo fato de eu não ter “vivido” minha infância e minha adolescência. Sim, recuperar o tempo perdido na pobreza. E essa urgência inclui tanto o prazer como os objetivos práticos da existência. Só se vive uma vez. Uma única vez. E a vida é muito vasta para ser devorada numa única existência. Essa consciência de nossa limitação temporal pode ser altamente positiva em todos os sentidos. Pois é uma inesgotável fonte de energia.

 

*Barros é um nome fictício.

 

18-12-16