De Amor e Solidão
fevereiro 1, 2017
De Amor e Solidão
S1
Como ave precursora de solidão
de asa ferida e sonho rasgado
atravesso o deserto do exílio
à procura do ninho
A1
A tua pele absorve-me a culpa milenar
fundindo-se com a minha
e me narras à meia luz
a fábula do beduíno e do masai
S2
Partiram os deuses
restam apenas lendas que não curam
e Deus não responde aos meus gritos
de silêncio
A2
E entendi atos que minha razão negava
e me tornei menino para te amar
sem perguntar
apenas sentir
S3
Eu os fiz
eles têm meu nome meu sangue meu DNA
mas eles não têm meu Verbo
que recusam
A3
A pele se inflama
a carne se entrelaça
a morte foge perante a candeia
da paixão
S4
No cabo da Desesperança
pisca a alma
para atrair um navio
perdido
A4
De onde vens estranho amor
que semeaste a candeia da alma
no meu membro descrente?
de que espaço de que tempo?
S5
Não me pareço com nada
minha voz não encontra eco
vislumbro luz na sombra
a luz dos outros me fere
A5
Mergulhas-me na humildade
na generosidade
na alegria primitiva de viver
e teu amor me aproxima de Deus
S6
Em abismos de meteco
sondo relíquias de sonhos
onde os mortos falam
a minha língua
A6
Calo-me perante a extensão do teu olhar
e povoo meu silêncio com o vasto sorriso
da compreensão infinita
de amar e ser amado
S7
Nada sou sem o espelho do outro
nada sou sem a palavra do outro
em meu castelo urdo uma língua
que nunca será compreendida
A7
Quando o furor animal
funde nossos corpos
o estertor da pequena morte
faz-nos pingar a alma feita uma
S8
Muito hei de esperar para que os outros
vejam minhas cores ouçam meu som
muito hei de esperar para que minha luz se faça
na glória do silêncio
A8
És meu suor minha saliva meu odor sou teu
és o vôo da águia sou o pulo do tigre
és o lago profundo sou a torrente
és a savana sou o deserto somos êxtase
S9
O ser e o cosmos
a solidão da pergunta
o Absoluto inatingível
Deus não me trava não me liberta
A9
Bebes minha essência bebo a tua
nossas almas se tornam a nossa alma
nossos corpos o nosso corpo
para além do gozo de estar ser
S10
Meu Pai foi embora
pelos caminhos da Razão
só fiquei como animal abandonado
em terra inóspita
A10
Dou-te de boca para boca
as capitosas uvas do desejo
e abafo teus gemidos
com o uivo do meu gozo
S11
Nas ermas paragens
habito-me
de silêncio e luz
do Nada
A11
Há nos gestos cotidianos
de um para o outro
a dimensão sagrada
de zelar pelo uno
S12
Entre a cegueira do ignorante
e a cobiça do perverso
traço o voo proscrito
acoplando vácuo e exílio
A12
Da fúria animal
extraímos a seráfica ternura
e a liturgia sem par
do uno em êxtase
S13
Hordas de fanáticos
arrastam-se como larvas
atrás de deuses repulsivos
e me cubro de lama para afugentar os súcubos
A13
Olhos nos olhos
debulhando os séculos
dos que amam
plasmando eternidades no instante
S14
Longas estradas de mutismo
a inteligência rarefeita me sufoca
reverberações sem revelações
a alma crava-se espinhos para se aquecer
A14
Invasão mútua tornando-nos primitivos
anulação mútua tornando-nos platônicos
anexação do corpo transferência da carne
te amo em mim porque em ti sou
S15
Mentes estreitas corações mesquinhos
da caatinga às estepes
de exílio em exílio sou
chego em solidão estou
A15
E a solidão com vara magicamente amor se fez
soam os sinos entre as pernas
a glória de viver
no instante sagrado de existir
19-02-16/06-06-2016