Tradição Anarquista

setembro 26, 2012

E Te Erguerás, Jovem

Ao meu neto Matheos

Tradição anarquista. Ah, comichão da revolução!…

– Pai, conta do vô.

– Sim, filho, as papoulas magrebinas têm gosto de lua azul e viram nascer seu avô. Ele dizia…

“E Bakunin disse

A paixão pela destruição é uma paixão criativa

E te erguerás Jovem

Com fúria e dignidade

E semearás a pureza do caos

Ave Zeus Pai Supremo

Filho de Crono e de Reia

E como um deus límpido

Tomarás as rédeas do mundo

E serás senhor onipotente do destino das nações

Que passarão a ser regiões

No Planeta dos Homens”

– Pai, é verdade que o vô nasceu em Meknès, de pai francês e mãe judia sefardi e que foi raptado por berberes e levado para Tiznit?

– Filho, não se sabe. Ele nunca falava sobre isso. Mas dizia…

“E Bakunin disse

O Estado é a negação da humanidade

E assaltarás bancos

Para depois incendiá-los

E pilharás supermercados

Para distribuir alimentos aos famintos

E incendiarás casas cuja opulência ofenda o pobre

E subverterás o Sistema assassino do Vil Metal

E castrarás os ditadores do Dinheiro

Ave Ares deus da Guerra filho de Zeus e de Hera

Ampare aqueles que lutam pela justiça”

– Pai, é verdade que o vô foi vendido a um casal de espanhóis que não podia ter filhos e levado clandestinamente para a Espanha, onde foi registrado?

– Filho, não se sabe. Seu avô nunca falava sobre o mistério de sua origem. Ele dizia…

“E Bakunin disse

A religião é demência coletiva

E Bakunin disse

Abaixo todos os dogmas religiosos, eles não são nada além de mentiras; a verdade não é uma teoria, mas um fato

E transformarás igrejas mesquitas e sinagogas

Em templos do culto da Razão

Ave Atena Palas deusa da Inteligência

filha de Zeus e Métis

Tu que privilegias a sabedoria

E acorrentarás pelo pescoço os líderes religiosos

Que pregam a violência da abstinência sexual

E promoverás o culto do Sexo como libertação

Ave Afrodite todo-poderosa deusa do Amor

Filha de Zeus e de Dioneia

Ou do esperma de Urano na espuma do mar

Ave Eros filho de Afrodite e de pai desconhecido

Tu que proteges os que amam

E derrubarás todas as fronteiras

Ave Hermes deus das viagens

O que guia as almas dos mortos ao reino de Hades

Filho de Zeus e de Maia

Ergue-te Jovem

e destrói para construir um mundo novo”

– Pai, o vô uma vez me contou que ele nasceu em Tânger, mas só foi registrado na Espanha, como nascido em Granada. É verdade?

– Filho, não se sabe ao certo de nada. É provável. Seu avô dizia…

“E Bakunin disse

A uniformidade é a morte; a diversidade é a vida

Esse novo mundo te pertence Jovem”

– Pai, o vô era anarquista?

– Sim, filho. Pois ele era superior.

*

E aí burguês, espantado com a brincadeira bakuninista-heleno-magrebina? Por que tanto medo, burguês? Por que você é tão mesquinho, tão apegado às pequenas merdinhas que te cercam? Por que você é tão voraz? Você parece cupim ou rato consumindo. Que falta de espírito – no sentido francês. Que falta de inteligência. Que vulgaridade. Será que você ainda não percebeu que vai morrer como todo mundo? Que teu futuro é pasto para vermes? E que desta vida, nada se leva?…

 

7 de setembro de 2012

R.Roldan-Roldan (David Haize)

Escritor libertário, orgânico, animal, marginal, autor de 30 livros que não fazem concessões.

 

Matar É Divertido

setembro 7, 2012

Matar É Divertido

 

As recentes chacinas do Colorado e do Wisconsin não só reabrem o debate sobre controle de vendas de armas, como levam a indagações de ordem ética e moral mais profundas.

A violência se espalha. Contamina o Planeta. Eleva-se com o neoliberalismo que, além de contribuir para o aumento da corrupção, incita ao roubo e ao assassinato, já que toda ética foi eliminada no ringue do vale-tudo. Até um dos melhores países do mundo, a Noruega, “aderiu” à moda dos massacres, como é o caso de Anders Breivik que, em 2011, matou 77 pessoas. Estatisticamente, os EUA são menos violentos do que o Brasil e o México, dois dos países mais violentos do mundo. O que não impede a sólida tradição de violência norte-americana que data da época do início da colonização. Além do mais, os EUA, como país profundamente conservador e reacionário, para não dizer fascista, e que pomposamente se outorga os troféus de maior democracia do mundo (estranho conceito de democracia numa nação onde não há saúde pública [são tão perversos que alegam que saúde publica é coisa de comunismo] e onde ainda existe a pena de morte) e de paladino da liberdade (estranho conceito de liberdade numa nação que se caracteriza pela invasão dos países que contrariam seus interesses, pela caça às bruxas e pela ausência de mídia independente, já que a mídia existente faz parte das grandes corporações cujos interesses defende, portanto manipula a opinião pública), os EUA têm, como nenhum outro país, um poderoso lobby a favor da venda sem restrições de armas, que podem facilmente ser adquiridas até pela internet, como quem compra um livro ou um disco. Lobby, claro, ligado à industria de armas.

Mas, como mencionei acima, essa violência, além das considerações sócio-políticas (praticamente toda violência é sócio-política), induz a reflexões de teor ético e moral. Já que é inconcebível que o ser humano, sem distinção étnica, religiosa ou política, tenha chegado ao século XXI com pouquíssimo avanço moral. Pois hoje em dia mata-se como se matava na pré-história. Ou certamente mais. Pior: atualmente mata-se até por prazer (o que certamente o homem primitivo não fazia), por divertimento. Como nos games. Sim, como nos games. Os jogos. Matar se tornou um jogo. Matar é lúdico. Matar é divertido. Matar é normal. Virtualmente ou realmente. Que valor tem a vida hoje em dia? Mata-se para roubar, como no Brasil. Mate-se para tornar-se famoso, como nos EUA. Mata-se a torto e a direito por sectarismo, como no Iraque. Mata-se e pronto. Como quem mata um pernilongo ou uma barata. Porque não há mais respeito pela vida humana. Porque a vida do ser humano não tem nenhum valor, nenhuma importância. Porque Deus está morto, segundo dizem os pensadores. Porque todos os valores éticos e morais foram destruídos com o advento do neoliberalismo.

Será que o cidadão honesto e consciente não se dá conta (ou não quer se dar conta) que ainda continuamos a fabricar armas? Armas cada vez mais sofisticadas e letais? Será que o cidadão crente (seja qual for a religião) não percebe o horror, a aberração, a monstruosidade de produzir objetos destinados exclusivamente a matar o próximo? Será que ele não tem consciência de que a criação de aparelhos ou maquinas feitos para matar viola as leis da Criação, as leis sagradas da Natureza? Ao que tudo indica, a humanidade, atrasadíssima (ou devo dizer cega?) não tem noção da extensão dessa monstruosidade. Aparentemente o ser humano acha normal que um país ainda tenha exército, embora existam países muito dignos – que deveriam servir de exemplo – como a Costa Rica e a Islândia, que não têm forças armadas. Céus! Que atraso moral assola essa nossa humanidade.

Para concluir, gostaria de acrescentar algo pessoal. Meu pai, por uma questão de princípio, nunca me deu armas de brinquedo – e eu tenho muito orgulho do meu pai. Assim como eu, por princípio, nunca dei armas de brinquedo aos meus filhos.

22-08-2012

R.Roldan-Roldan é escritor

www.davidhaize.wordpress.com

Publicado no jornal Correio Popular de Campinas, a 4-09-2012

 

Prelúdio Para Sinfonia Inacabada

(Prefácio para “Engel – Sinfonia Inacabada Para Anjo e Poeta)

                                                         Como todo grande (e não digo grande por ele ser meu amigo, pois basta lê-lo para comprová-lo) escritor, Roldan-Roldan tem suas obsessões, por assim dizer, literárias. Quem leu (são poucos) sua obra, conhece-as: a identidade, o exílio, o deslocamento, o sexo, o tempo, o silêncio, o desprezo pelas convenções, e a infância triste são as principais. Porém, se todos os seus livros, de um modo ou de outro, refletem direta ou indiretamente essas obsessões, nenhum deles se repete. Ou seja, Roldan-Roldan se renova, se reinventa a cada nova obra. O Bárbaro Liberto (premiado na Itália), Boa Viagem Sheherazade ou A Balada dos Malditos (também premiado na Itália), Litterata ou O Doce Sorriso do Macho Satisfeito e Rapsódia Para um Viajante Solitário são romances de estrada tendo a viagem como metáfora iniciática ou périplo existencial. Mas em Matriochka ele rompe com a sua estrutura narrativa e nos apresenta um antirromance lúdico que se afasta totalmente do romance tradicional e desnorteia o leitor. Enquanto que com E-mails – Confissões Íntimas de Uma Socialite ele nos oferece um romance epistolar na melhor tradição francesa do gênero.

Em Engel – Sinfonia Inacabada Para Anjo e Poeta, Roldan-Roldan mergulha em seu elemento preferido: o fantástico, ou talvez mais especificamente, o surrealismo. E, nessas águas pouco plácidas, ele nada com a destreza de um delfim. Por mais que certos trechos de seus livros sejam abertamente naturalistas, principalmente no que se refere ao sexo, ele é essencialmente um escritor surrealista tanto na prosa como na poesia. E Engel… é um exemplo disso.

Engel – Sinfonia Inacabada Para Anjo e Poeta, um longo poema em prosa de mais de cem páginas (um tour de force de imagens subjugantes), tem a estrutura de uma sinfonia e se divide em movimentos, que acompanham os movimentos do coração e da mente do poeta (o narrador) cujo estado de espírito dita o ritmo, que vai do adágio ao alegro passando pelo andante. Esse poema de fôlego é, antes de tudo, uma apologia dos sentidos. Não é por acaso que cada movimento se inicia por uma cor, um odor e uma droga, ficando sugerido que o clima onírico que envolve o livro é decorrente de sucessivas alterações dos sentidos, embora a obra dê margem a inúmeras interpretações ou leituras subjacentes.

Engel… trata do encontro entre um poeta que, cansado do peso cotidiano do chão, busca o divino – no sentido de suprema elevação espiritual – e um anjo que, cansado da “insípida eternidade”, busca o humano. O poeta aspira aos altos voos do espírito, enquanto o anjo quer conhecer o amor e o sexo. A paixão explode entre os dois. Mas o anjo é instável, pois quer conhecer todos os prazeres que a vida terrena oferece. Enquanto o poeta, vivido e começando a envelhecer, anseia por uma estabilidade emocional que o anjo, como um adolescente volúvel, não é capaz de lhe oferecer. Mesmo assim a personalidade de um invadirá a do outro (ou estaríamos diante do desdobramento de um único ser?) – e temos aí, mais uma vez, o tema da identidade, tão caro ao autor. O anjo aceita a mortalidade em troca do amor humano. O poeta, no entanto, não pode se tornar imortal.

Nas andanças do insólito par desfilam imagens deslumbrantes, tais como as estátuas falantes; o interior de uma imensa árvore oca onde flutuam monstros de Hieronymus Bosch; a festa pagã na floresta, com ninfas e faunos; a cidade em chamas e o poeta se masturbando perante a beleza do espetáculo do fogo e a sugestiva sequência no fundo do mar, numa catedral ortodoxa submersa, numa clara referência a Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, sequência cuja graça e leveza se opõe em atmosfera e plasticidade à descrição do edifício em construção abandonado frequentado por mendigos, yunkies e bêbados que refletem a degeneração do ser humano e onde podemos vislumbrar a “beleza do horror” de Baudelaire. Todavia, para compensar, Roldan-Roldan nos brinda com os magníficos voos da dupla, numa alusão ao misticismo selvagem de Rimbaud. Aliás, curiosamente, o misticismo que impregna todas as aventuras dos dois personagens é laico, ou seja, o que emana de todo o relato é uma espiritualidade laica, pois em nenhum momento a palavra Deus é mencionada.

A ressaltar também a exacerbação, o desespero da carne. Há no poeta, que como já foi citado é o narrador, uma obsessão sexual pelo anjo, cujo desejo não parece tão premente e obsessivo. Esse conceito, essa visão do sexo, que tortura mais que satisfaz, é uma característica da obra de Roldan-Roldan. Em Engel… o anjo bebe o esperma do poeta para, deixando aos poucos sua condição divina, tornar-se cada vez mais humano. O que não anula seu poder mágico de ainda poder voar e fazer o poeta voar, literalmente falando.

Absolutamente original, perturbador, instigante, denso e melancólico, Engel – Sinfonia Inacabada Para Anjo e Poeta ultrapassa o mero conceito surrealista de inconsciente e insere uma “mensagem”, propondo ao leitor não só uma delirante viagem onírica, mas uma dimensão, visceral e metafísica ao mesmo tempo, da busca eterna do ser humano pelo Ideal ou, para usar uma palavra cara a Roldan-Roldan, o Absoluto que, para ele, tende a representar o mais alto grau de espiritualidade. O que pode significar esse Deus que o escritor parece procurar em toda a sua obra e não encontrar. Em suma, Engel – Sinfonia Inacabada Para Anjo e Poeta é um assombro de originalidade, estética e densidade dramática.

Pierre-Auguste Lanord

Escritor e jornalista

29 de agosto de 2012