CARTAS A UM FILHO EM COMA


R.Roldan-Roldan

(David Haize)

Publicado pela Editora Komedi

Julho de 2013

ISBN 978-85-7582-686-7

1.Cartas brasileiras I.Título.

13-06824       CDD-869-96

 

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Cartas a um Filho em Coma

 

Aos meus queridos amigos, que tanto me

  apoiaram moral e materialmente,

com profunda gratidão.

Le temps d´apprendre à vivre il est déjà trop tard

(Apenas o tempo de aprender a viver e já é muito tarde)

Louis Aragon (in Il n´y a pas d´amour heureux)

No Hospital

I

 

         Filho amado,

Decidi te escrever. Mesmo que você não responda. Por que escrever a um filho em coma? Poderia dizer que é para preservar a memória. E deixar um testemunho de uma experiência dolorosa. Ou seja, se eu morrer antes de você acordar – porque tenho certeza de que você vai acordar – você poderá ler o que vivi e senti durante esse período em branco (ou em negro) da minha vida. Mas não é isso, não. Talvez a coisa seja mais simples. Menos romanesca. Sou escritor. Intensamente escritor. Visceralmente escritor. E você sabe disso. E como sou absolutamente escritor, vivo em função da escrita. E minha existência gira em torno da literatura. Neste caso pouco importa o que escrevo. O que conta é que a literatura é meu alimento, não só intelectual (e esta palavra não me intimida, não, pois em mim é genuína), mas espiritual, já que não professo nenhuma doutrina nem disponho de deuses ou de Deus a quem apelar quando intermitentemente naufrago no oceano do absurdo que é o existir. E é para deixar de existir e passar a viver que abraço o verbo escrever. E, claro, você me conhece, não vá pensar que um dia talvez eu leia algumas destas eventuais cartas, em palestras, a pais e mães vivendo uma situação similar à que eu estou atravessando, para ajudá-los a tocar o barco para frente e lhes dar um exemplo de “coragem”, “abnegação” e “superação” – entre aspas mesmo, pois não acredito que eu possua essas virtudes. Palavras gastas. Ou baboseiras. Ou mitificações. Como quiser. Sim, porque eu não minto. E se alguns amigos acham que tenho muita calma e coragem, é porque não sabem que à noite, quando estou sozinho, choro como uma criança desamparada. E, na solidão da minha dor, me desespero. Sem gritar. Sem quebrar nada. Sem chamar ninguém. Em silêncio. E chego a implorar… Mas deixa para lá. Um outro dia eu te falo disso. E durante o dia, não que eu coloque uma máscara – porque não preciso representar para ninguém –, mas não gosto de dar shows gratuitos de derramamentos ou sessões lacrimogêneas, como você preferir. O fato de eu não ser zen, de ser um vulcão, não me isenta de um certo pudor de exibir a convulsão da minha dor. Acho que devemos ter uma postura digna em qualquer momento da vida. Seja qual for.

É só por hoje. Pouco, né? Falta de energia. O gás anda curto com essa tensão constante. Com esse terrível esperar pelo teu acordar. Quando você despertar, vai ser uma festa. Vou convocar os amigos e vou encher a cara. Ah, meu filho, não se faça esperar muito. Volte logo. Que eu não sou tão forte assim. Nem tão jovem. Sim, o cansaço já se faz sentir. O combustível da alma anda escasso. Mesmo para escrever. Mas redigir esta primeira carta me fez muito bem.

Um beijo.

Teu pai

P.S.: Te escrevo um mês após tua internação – antes não dava. Sim, te escrevo a primeira carta um mês após você entrar em coma.

II

 

         Meu filho amado,

No dia do teu acidente, 22 de março, teu irmão me telefonou por volta das 17 horas: pai, meu irmão caiu da moto e foi para o pronto socorro, mas está tudo bem, ele está consciente; vou passar e te apanhar para irmos ao hospital. Minha primeira reação foi de irritação: porra, eu tinha te avisado: não compre moto, economize e compre um carrinho. Mas, fora a irritação, eu estava calmo: afinal de contas, era apenas uma queda. Nada grave – pensava eu. Quando chegamos ao hospital, já tinham te prestado os primeiros socorros. Entrei primeiro – só podia entrar uma pessoa por vez. Mas antes de entrar ficara sabendo do realmente ocorrido. Teu irmão me contou que você não caiu da moto, mas bateu contra a roda traseira de um caminhão. O caminhão estava errado. Teu irmão não me disse de cara o que de fato houve para não me assustar. Assim, quando entrei no teu quarto coletivo, estava calmo como já disse – eu diria que até frio, não fosse a irritação. Aproximei-me do leito. Por segundos fiquei imóvel, sem pronunciar uma palavra. Achava que não era hora de te fazer ouvir um sermão. Então você me cumprimentou: oi “couillon”. Couillon, que significa babaca em francês, era, no caso, não uma palavra ofensiva, agressiva, mas, muito pelo contrário, um termo ao qual você dava uma conotação carinhosa. Respondi, meio seco: oi. Sem te tocar. Depois, para minha surpresa, você me pediu em francês: “bisou” (beijo, beijoca). Dei-te um beijo, sem dizer nada. Após o que, para surpresa maior ainda, você me pediu perdão em francês: “pardon”. Aí, a coisa mexeu comigo. Respondi, em francês: descanse agora. E saí do quarto para que teu irmão entrasse. Meu estado emocional tinha se alterado. Não estava mais irritado. A tristeza me invadia. Mas ainda não havia preocupação. Pois você estava consciente e, embora com pernas e braços fraturados, estava bem. Pelo menos aparentemente. Sim, teu pedido de um beijo e de perdão tinha me sacudido. Por que em francês? Porque assim era mais fácil de eu te perdoar, já que você sabia que eu gostava que você me dirigisse a palavra em francês? Ou seja, uma pequena chantagem como se você tivesse voltado a ser criança? Ou por que, em teu estado todo estropiado, você regredia e voltava a ser o menino que precisava da ajuda, da proteção, do carinho do pai para te amparar? Desse pai francófono que te falava em francês quando você era pequeno, embora a maioria das vezes você respondesse em português e eu, claro, nunca exigisse a réplica em francês. Era isso? Seja o que for, nunca esquecerei na minha vida essas tuas palavras na língua em que fui alfabetizado. Palavras que foram fundo no meu peito, no hospital. Palavras que desarmaram a irritação e me emocionaram duplamente. Mesmo porque, uns dias antes, numa discussão por causa da moto, eu te disse, ríspido: muito bem, espero que você não deixe tua namorada viúva e teu filho – que vem vindo – órfão. E essas minhas palavras duras agora me deixavam um mal-estar próximo do sentimento de culpa.

Horas depois, de madrugada, num outro hospital para onde você foi transferido por causa do meu plano médico (que inclui você), você era submetido a uma cirurgia nas duas pernas e no braço esquerdo. E aí você afundou. O coma. O drama. O início da fase mais angustiante de minha vida. Começava o pesadelo que faria com que eu nunca mais fosse o mesmo.

Um beijo.

Teu pai

III

 

         Filho amado,

Quando te vejo pela primeira vez na UTI, todo intubado e com os membros engessados além da perna direita cheia de ferros que parecem uma torre Eiffel hospitalar, levo um (digamos quase) choque. Algo brutal, por assim dizer, me chacoalha da cabeça aos pés. Mas permaneço, como de hábito em ocasiões dramáticas, sereno. Uma serenidade, inerente a minha pessoa, que me espanta. Só sei que, com o passar dos dias, está me vindo, não sei de onde, uma infinita paciência. Uma inquebrantável esperança. Uma humilde aceitação do ocorrido com teu corpo, com tua mente. Um apagar-me total para ser apenas espera. Espera pela tua volta. Pelo teu despertar. Todo dia, na UTI, meia hora de manhã e meia hora à tarde – os outros dois períodos de 30 minutos, que completam a visita matinal e vespertina de uma hora, são para tua mãe – te falo. Te falo. Te falo de nadas. Pequenos nadas cotidianos. Fulano ligou e mandou um abraço. Fulana ligou e mandou um beijo. Todos rezam ou torcem pela tua recuperação. E me lembro do filme Fale com Ela, de Almodóvar. E me digo que preciso continuar a te falar. E noto que você me ouve. Que há uma percepção quando te falo. Não sei até onde vai essa percepção. Esse teu detectar a voz do teu pai. Sim, há uma comunicação. Mesmo que você não saiba o que estou dizendo. Mesmo que você não entenda o que significam minhas palavras. O que posso afirmar é que você reconhece minha voz e reage. Os aparelhos acusam essa tua reação. Tua pressão sobe. Teus batimentos cardíacos aceleram. Embora você permaneça imóvel. E uma emoção muito forte me invade. Uma emoção que me abala. Você me ouve e sabe que sou teu pai. Teu pai te falando. E te digo o que nunca disse. O que os homens não costumam dizer aos filhos (foi o que aprendi com meu pai) porque é algo que está subentendido, logo, não precisa ser frisado. Eu te digo: eu te amo, filho, e você é o ser mais importante da minha vida. E te digo e repito: filho, eu te amo mais do que tudo no mundo.

Sim, eu costumo gelar nessas ocasiões graves da vida, nessas horas de impacto. Gelar no bom sentido. Não choro. Meus olhos nem sequer ficam marejados. Nem uma palavra. A mente pára. Para se recompor. Para domar o tumulto avassalador da emoção. Sim, a emoção pára também. De certa forma. Assim como o corpo. O corpo imobilizado. Sem o esboço de um gesto. Parece que sou um ser frio. Distante. Cerebral. Ou indiferente. Ou um ser incapaz de qualquer manifestação de emoção. E isso não é premeditado. Isso não é bancar o durão. O macho que não se abala nem perante o estado gravíssimo do seu filho. O intelectual fleumático que só se comove com as injustiças sociais. Mas que é incapaz de expressar um gesto de amor pelo seu filho. No entanto, nada mais falso do que essa fleuma e frieza aparentes. Pois é, como é que um cara absolutamente sanguíneo, visceral, emocional, impulsivo, explosivo, pode reagir de tal modo? Será minha aversão pelo histerismo, pelos derramamentos, pelo estouro da emoção em público? Como se debater-se, gritar, arrancar-se os cabelos definissem a intensidade da dor. Eu não sei, filho. Não sei por que sou assim. Sou contraditório. Apenas contraditório. Embora cultive a paixão da coerência. Mas veja bem, não estou muito preocupado com esses meus paradoxos. Apenas observo. Apenas ausculto minha alma. Sim, estudo as marés da minha alma. E minha alma, claro, é a alma do homem, quero dizer do ser humano. E por acaso existe algo mais fascinante do que o ser humano? Não. Nem mais instigante. E eu quero saber. Porque saber, como amar, afasta a morte.

Um beijo.

Teu pai

 

 

 

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Maio de 2008

Bruna, A P… Endeusada

abril 11, 2011

Bruna, a P… Endeusada

 

Nada tenho, em princípio, contra a prostituição do corpo. Porque bancaria eu o puritano debiloide se a sociedade é basicamente prostituta? Mercenária e prostituta, principalmente no paraíso neoliberal, com sua voracidade patológica, onde tudo se vende, desde o amigo até pai, mãe, filhos e mesmo Deus. Não existe diferença fundamental entre oferecer os serviços (ou favores) do corpo e outros tipos de serviços (ou favores) em troca de dinheiro. Inclusive é bom frisar que a prostituição profissional (os alpinistas sociais sem ética no afã de subir na vida), ideológica (a esquerda com discurso e comportamento divergentes, ou seja, usufruindo as delícias do neoliberalismo)  e religiosa (que ganha dinheiro com a palavra de Deus), são infinitamente mais graves, perniciosas e degradantes do que a prostituição do corpo. O corpo se lava. A alma não se lava. Durante séculos, a sociedade ocidental esvaziou todos os seus pecados no esgoto preparado pelo poder para o sexo. E até hoje continua tão atrasada que não percebeu (ou foi incapaz de romper tabus) que o crime sexual (seja estupro ou pedofilia) é absolutamente menos grave do que o crime ecológico que põe em risco o Planeta e toda a humanidade.

Mas em verdade não estou hoje aqui para condenar a prostituição. Mas para abordar não só a ignorância. Mas a perversidade generalizada de um sistema que faz questão de que seus cidadãos sejam alienados. E ignorantes, claro. Quanto menos pense o povo, quanto menos instruído, mais manipulado é. E chegamos onde quero. O recente lançamento do filme “Bruna Surfistinha”, de Marcus Baldini, baseado nos relatos intitulados “O Doce Veneno do Escorpião”, de Raquel Pacheco, nos (e digo nos porque nem todos somos alienados ou imbecis) leva a constatar, mais uma vez, o quanto uma sociedade cheia de tabus e preconceitos como a brasileira é permissiva. Uma contradição, sem dúvida. Mas é um fato. E esse fato se deve ao fenômeno da mídia que tão bem se dá com as diretrizes do sistema vigente, que nunca deixou de bajular. Ou seja, se lixo vende, vendamos lixo. Isso mesmo. Vamos impingir lixo. Que a massa devora lixo. O livro de Raquel Pacheco é um livrinho ameno, consumível, raso. Que não diz nada. E que se esquece facilmente. O livro, porém, não é moralista. Só faltava isso. Bruna/Raquel, filha de classe social alta, se prostitui porque gosta. Estamos longe da pobre garota do interior que chega à cidade grande e, pressionada pela falta de dinheiro e até pela fome, se “perde”. Bruna/Raquel se “perde” por optar por esse caminho. Uma opção. Como outra qualquer. O filme, fiel ao livro, segue a mesma linha. Não é ruim. Tem fluência narrativa e boas interpretações e prende a atenção. O diretor Marcus Baldini deixou claro que tinha como objetivo um produto comercial. Como o livro. Nada é contundente no filme. Não há grandes voos. Nem grandes mergulhos. Pasteurizado, hollywoodiano, diz que a prostituição pode dar certo. E torna a protagonista a grande meretriz nacional. E está tendo público. Muito. Até aí tudo bem. O que espanta, porém, é a máquina da mídia. Que transformou Bruna Surfistinha na mais famosa vagina pública da história do País. Em suma, numa deusa. E para alguns idiotas, numa heroína, numa sofredora. Que mistificação! Nada mais falso. A Surfistinha é, ante de tudo, uma excelente mulher de negócios. Como recomenda o sistema, matriz de prostitutas e prostitutos em todos os sentidos. Com senso inato de marketing. Seu “Doce Veneno…” vendeu 250 mil exemplares e foi traduzido para 15 idiomas. E o filme está virando um blockbuster. Mitos chulos. Pobres. Baratos. Mitos de botox e silicone. Excrementos com glacê. Sinal dos tempos. Destes tempos famélicos onde prevalece o mau gosto. O grotesco, como o BBB, suprassumo da cretinice (se pelo menos fosse divertido, mas é maçante ao extremo). Onde impera a vulgaridade da turba. O achatamento cultural. Onde se instaura oficialmente o lixo cultural. Onde os demagogos (no fundo fascistas) alegam que é isso o que o povo quer. Que fraude cultural! Como se o sistema, de modo sub-reptício, não impusesse ao povo o que ele (o sistema) quer que o povo consuma. Em outras palavras já ditas: seja ignorante, consuma m… e cale-se.

 

28-03-2011

 

R.Roldan-Roldan é escritor

www.davidhaize.wordpress.com

 

Publicado no jornal “Correio Popular” de Campinas a 6 de abril de 2011