Toda avaliação crítica de uma obra de arte é relativa. Ou seja, subjetiva. Por mais objetivo e imparcial que o crítico tente ser. Os parâmetros estéticos sempre acabam cedendo – o que é absolutamente normal –, em maior ou menor grau, diante dos conceitos, preceitos, formação cultural e sentimentos daquele que elabora a crítica. A sua visão de mundo sempre influenciará o seu julgamento. Simplesmente porque a arte não é uma operação matemática: algo correto ou incorreto. Além do mais, a verdadeira obra de arte precisa, como o vinho, de um determinado tempo para florescer e ser assimilada. Mesmo porque, via de regra, está adiante de seu tempo. Logo, os prêmios outorgados por qualquer certame literário, cinematográfico, musical ou de artes plásticas são, no mínimo, senão suspeitos, pelo menos questionáveis. São inúmeros os casos de obras “perdedoras” que o tempo consagrou. E de obras “vencedoras” que o tempo apagou. A título de exemplo, três dos maiores escritores do século XX, Kafka, Proust e Joyce não receberam o Nobel. Greta Garbo, atriz fascinante e o maior mito do cinema mundial nunca ganhou o Oscar – outorgaram-lhe um Oscar honorário para compensar a injustiça. O clássico A Bela da Tarde, de Buñuel, foi recusado pelo comitê de seleção do Festival de Cannes – mas, em contrapartida, obteve o Leão de Ouro em Veneza.

Posto isto, ou seja, a relatividade dos prêmios, o que dizer quando o prêmio não é questionável ou tendencioso, mas suspeito, ou abertamente fraudulento? Vejamos, especificamente, os prêmios literários. Fora a picaretagem de numerosos pequenos concursos que visam extorquir dinheiro de incautos aspirantes a escritor, seja com altas taxas de inscrição ou com a participação financeira dos vencedores e finalistas para a publicação de uma antologia, existem concursos mais “sérios” que de modo algum provam que sejam, de fato, honestos. Geralmente, quando se trata de obra inédita, o trabalho deve ser remetido ao concurso sob pseudônimo. O que não quer dizer nada. No sentido de que não haja favoritismo. Ou, em outras palavras, que o procedimento ateste a imparcialidade e honestidade do prêmio – virtudes, a verdade seja dita, nada em voga, hoje em dia, entre cidadãos respeitáveis. Vamos supor que eu seja membro do júri de um concurso. De que adianta o pseudônimo se eu sei que a minha amiga Maria e o meu primo Pedro vão participar, sob o pseudônimo de Josefina e João respectivamente, do concurso e se eu estou disposto a favorecê-los?

O último concurso de literatura da Funarte é um exemplo ilustrativo da falta de transparência ou, mais explicitamente, de honestidade. Tratava-se de um concurso de projetos de obras literárias. Assim, venceria o melhor projeto de romance, novela, contos, crônicas ou poesia. As inscrições requeriam, além da ficha de inscrição devidamente preenchida, uma porção de documentos: cópia do RG, do CPF, comprovante de residência, certidão negativa de débitos de tributos e contribuições federais, declaração assinada pelo candidato confirmando que reside no município da região em que concorre há pelo menos dois anos, declaração devidamente assinada pelo candidato de que a obra é uma criação original, responsabilizando-se por não ferir direitos autorais de terceiros, mais cinco vias do currículo e cinco vias do projeto da obra a ser desenvolvida, incluindo trechos já produzidos ou em desenvolvimento dessa obra. Tais inscrições foram realizadas entre 26 de outubro e 10 de dezembro de 2007. E, pasmem, o resultado saiu publicado no Diário Oficial do dia 13 de dezembro. O que significa que os 495 trabalhos inscritos foram supostamente analisados e julgados em dois dias, já que no terceiro dia (13/12/2007) o resultado já estava publicado. É possível ler e avaliar 495 projetos literários em 48 horas? É óbvio que não. É uma evidência ululante que os vencedores (dois por região do País) tinham sido escolhidos de antemão. E é claro que toda essa encenação do concurso, com todas as suas exigências burocráticas era apenas uma farsa. Uma farsa que nem se deram ao trabalho de disfarçar. Enfim, uma palhaçada. Um embuste. Que tipo de gente manipula a Funarte? Gente desonesta. O que equivale a lixo. Não teria sido mais fácil, mais transparente, mais limpo, premiar por indicação? Mesmo levando em consideração que indicar alguém é algo muito relativo, pois apenas depende do lobby do candidato para vencer. Mas enfim, é uma indicação. E um direito que a Funarte tem de indicar alguém. Porém, o que é inadmissível é o modo como a coisa foi feita. Uma total falta de consideração, de respeito para com essas centenas de concorrentes que foram feitos de bobos. Que gastaram tempo e dinheiro para nem sequer participar do concurso. Prevalece a impressão de que, encerrando o concurso no dia 10 do 12 e publicando o resultado no dia 13 do 12, a Funarte estaria em tempo hábil para gastar essa verba antes que o ano se encerrasse. Nepotismo literário. Corrupção. Ainda existe algo honesto no País? Lamentável.

R.Roldan-Roldan é escritor, autor, entre outros livros, de Matriochka.
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31-08-2008

Artigo publicado pelo jornal “Correio Popular” de Campinas  a 12 de setembro de 2008

Honoráveis Torturadores

julho 31, 2009

Todos os países da América Latina fizeram a sua faxina histórica, por assim dizer. O Brasil ainda não. Todos os países da América Latina varreram o lixo da História e jogaram água com detergente, para uma limpeza mais eficiente. O Brasil ainda não. Ou digamos que os restos da pizza foram varridos para debaixo do tapete. O que não é uma limpeza, claro. Como manda a nossa vergonhosa tradição de impunidade. Todos os países da América Latina prenderam, julgaram e condenaram os seus seqüestradores, torturadores, estupradores e homicidas das suas respectivas ditaduras. O Brasil ainda não. Por que temos de ser política e sociamente, via de regra, mais atrasados do que os nossos vizinhos? Como, entre outras coisas, por exemplo, termos um dos piores salários mínimos do hemisfério, o que é um atraso social. Por que somos os únicos que ainda não limparam a sujeira da ditadura? Ou seja, por que ainda não resolvemos a questão dos crimes cometidos pela ditadura militar? Se a Argentina (que no dia 24 de julho sentenciou à prisão perpétua o general Luciano Benjamín Menéndez, acusado de seqüestro, tortura e desaparecimento de quatro civis), o Chile e o Peru reviram as suas legislações abolindo as normas que anistiaram os militares, por que nós não podemos ter mais dignidade e fazer a mesma coisa? Não. Nós sempre afrouxamos. Nós sempre colocamos panos quentes. Nós sempre buscamos uma conciliação que beira o indigno. Porque certamente essa atitude de omissão não é digna de um país que se diz democrático – embora não haja democracia dentro do neoliberalismo, mas isso é outra história. Nós proclamamos uma auto-anistia. E assim, os nossos seqüestradores, estupradores, torturadores e assassinos continuam à solta. Não foragidos. Não. Muito pelo contrário. Vivendo tranqüilamente, em paz. Livres e respeitados como honoráveis cidadãos. Como se não tivesse acontecido nada. Como se nenhuma atrocidade tivesse sido cometida. Que vergonha. Como é possível essa aberração judiciária? Aliás, para que serve a Justiça? Se não passa de uma farsa caduca, corrupta, decadente? Pois ignorar crimes de lesa humanidade e esquecê-los é um flagrante ato de injustiça e total degradação do Poder Judiciário. E não se trata de revanchismo. Em absoluto. Trata-se simplesmente, como já disse, de dignidade. E justiça. A impunidade (e não só dos crimes da ditadura militar) é uma mácula que o Brasil deve pensar em eliminar para ser mais respeitado no cenário mundial como país sério. Como país digno.

Outra coisa que deveríamos pensar em banir de uma vez por todas – será que ninguém pensou nisso até agora? – são todos os nomes de presidentes do regime ditatorial dados a logradouros. É simplesmente inconcebível – e ofensivo – que depois de mais de duas décadas ainda encontremos ruas, praças, avenidas, rodovias ou bairros com nomes como Castelo Branco, Costa e Silva, Médici e companhia. Quem são esses fulanos para merecer tal honra? Como é possível que um país perpetue o nome de um presidente da ditadura militar? Onde já se viu? Naquela época, obviamente, compreende-se. Mas agora? Soa ridículo. Grotesco. Esse ranço de totalitarismo que ainda persiste. Os países do Leste Europeu apagaram os vestígios do stanilismo. A Espanha, os do franquismo. O Chile, os do pinochetismo. Por que não fazemos a mesma coisa? Será que não basta ter o nome de Getúlio Vargas em tudo quanto é lugar?

27-07-08
R.Roldan-Roldan é escritor
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Artigo publicado pelo jornal “Correio Popular” de Campinas a 31 de julho de 2008

Viva Maio de 68!

julho 31, 2009

Há 40 anos, em maio de 1968, Paris pegava fogo. Esplendidamente. Romanticamente. Historicamente. Algo de fazer inveja à história de qualquer nação. Os muros tomavam a palavra e lançavam slogans que atingiam o mundo inteiro, com repercussão política significativa na Alemanha, Itália, Tchecoslováquia, EUA, México e Japão. Sejam realistas, peçam o impossível. A imaginação no poder. Proibido proibir. Somos todos judeus alemães. Professores, vocês nos fazem envelhecer. A anarquia é a ordem. O sonho é realidade. Decreto o estado de felicidade permanente. Um homem não é estúpido ou inteligente: é ou não é livre. A ação não deve ser uma reação, mas uma criação. Gozem aqui e agora. A revolução deve deixar de ser para existir. Amem-se uns sobre os outros. Façam amor e recomecem. Exagerar é começar a inventar. E assim por diante. Mas era um sonho. Apenas um sonho adolescente. Um movimento estudantil e social misto de anarquia e ideais hippies. O fragor de uma bela utopia. Mesmo porque os comunistas – que com seu tradicional conservadorismo, nunca entenderam que a verdadeira revolução inclui a revolução comportamental – preferiram – para sorte do governo – a ordem burguesa à nova ordem dos revolucionários de Maio de 68. Sim, um sonho de primavera. Embora houvesse conquistas essenciais para a história do Ocidente, tais como, entre outras, a liberação sexual, as grandes reformas universitárias, os direitos da mulher, das minorias étnicas, religiosas e sexuais e um novo comportamento de todos os jovens do mundo. A esquerda ortodoxa achou pouco, politicamente falando, diante da proporção do que começou com greves e acabou com insurreição. Quarenta anos depois, com as conquistas consolidadas, restou mais do que nada nostalgia. Não só a nostalgia do tesão revolucionário para “nós que amávamos tanto a revolução”, mas a nostalgia de um ideal. Um ideal? Que coisa démodée, não é? Talvez tão ultrapassada quanto a dignidade. E eis a questão. Pois se, de certo modo, celebro Maio de 68, não é tanto pelo fato de algo que poderia ter sido, ter deixado logo de ser – ou, sob um determinado enfoque, não ter chegado a ser. Ou porque pertencendo à geração de Maio de 68, e como soixante-huitard (o equivalente, “sessenta-e-oiteiro”, não existe em português) convicto não poderia evitar de deixar pingar um pouco de saudade da juventude, não só rebelde, mas politicamente consciente. O motivo da celebração da primavera de 68 se deve ao vácuo que se instalou, depois, substituindo o ideal. Em verdade, o que me faz olhar para trás não é o tempo perdido em si. Mas o presente, esse horror cotidiano que nos é impingido, suavemente, de forma latente, mas, no fundo, perversa, sórdida e, sobretudo, com um brilho que ofusca os idiotas e que, para aqueles que têm consciência, causa náusea e revolta. Refiro-me à globalização e a seu séqüito de falsos valores e degradação. A globalização incentiva o mais abjeto, vil e escabroso aspecto da condição humana: a cobiça. Promovendo assim a corrupção, a miséria e a inevitável violência que dela decorre e desencadeando, no processo acumulativo de dinheiro e poder, todas as mazelas que assolam o Planeta e que o levam à destruição. E esse processo de destruição, incluindo a ambiental, é conduzido com o mais desbragado cinismo. Assim, já não se trata unicamente da ruína dos valores éticos, morais, intelectuais, humanistas que, com algumas variantes, guiaram todas as culturas da Terra. Não. Trata-se simplesmente de um sistema que, não só não traz nenhum benefício (a não ser às grandes corporações e a uma parcela ínfima da população), mas destrói, literalmente falando, a civilização. Logo, por que deveríamos ter qualquer tipo de escrúpulos quanto aos meios de eliminar a globalização? Metaforicamente falando, guerra é guerra. E se a guerra é deflagrada, é necessário defender-se do inimigo. Em suma, deve haver um modo de destruir esse fascismo disfarçado de consumo, esse totalitarismo adocicado para melhor engolir, essa violência que nos é imposta – em nome do dinheiro e da competição – diariamente, de maneira camuflada para que aceitemos pacificamente, como verdadeiros imbecis, uma total falta de opção, já que só temos uma ilusória liberdade de fachada. A globalização é a antítese da democracia. Acrescente-se a esse admirável sistema reacionário e decadente – que não hesita, como Hitler, a lançar suas hordas para invadir os paises cobiçados – a inércia, a flacidez, o conformismo ou a cegueira da maioria silenciosa que se limita a encolher os ombros e a dizer que não existe alternativa. Que não há remédio. E os famigerados defensores da globalização alegam que é um processo irreversível. E se esquecem, estupidamente, de que, sob certos aspectos, a História não conhece nenhum processo irreversível. E se esquecem também de que o Terceiro Reich afirmava mais ou menos a mesma coisa. Que era irreversível e que duraria mil anos. Durou apenas doze anos (1933-1945). O próprio império norte-americano já está dando sinais de esgotamento e desgaste. E a União Européia está questionando os efeitos colaterais da globalização e tentando reformulá-la. Logo, diante da sordidez, da perversão, da ditadura da globalização, não posso me impedir de sentir saudade das barricadas, dos milhões de pessoas nas ruas contestando a ordem estabelecida, da paralisação de uma nação. Em suma, de Maio de 68. Há sempre dignidade na postura do Não, Basta! Mesmo que seja necessário atingir o caos para recomeçar. Para renovar, o que equivale a dizer: para continuar. A aceitação pode ser válida, talvez, do ponto de vista de um inelutável drama pessoal. Mas nunca política e socialmente falando. Águas estagnadas fedem.

R. Roldan-Roldan é escritor
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Artigo publicado pelo jornal “Correio Popular” de Campinas a 4 de maio de 2008

Um torcedor de futebol acompanha seu time. No campo. Na televisão. No jornal. Fala sobre seu time. Discute sobre seu time. Briga pelo seu time. E, quando pode, percorre longas distâncias para ver seu time jogar. Seu time faz parte de sua vida. Guardando as devidas proporções, um cinéfilo é algo semelhante: vive o cinema. Ele assiste aos filmes importantes – no cinema, em DVD só em último caso. Lê críticas e ensaios sobre cinema em jornais, revistas especializadas, livros. Acompanha pela imprensa os grandes festivais de cinema do mundo como Veneza, Cannes, Berlim. E outros não tão famosos, mas importantes, como o de San Sebastián, na Espanha, o de Locarno, na Suíça, o de Montreal, no Canadá ou o de Havana, em Cuba. E, obviamente – no caso de paulistas e paulistanos –, segue de perto tudo o que agita a Mostra de Cinema de São Paulo. Alguns cinéfilos de carteirinha programam suas férias no mês da Mostra para ver o maior número possível de filmes, principalmente os que não têm previsão de exibição comercial no País.  E, diga-se de passagem, a Mostra é um prato cheio para o mais exigente fã, com centenas de obras das mais variadas cinematografias do Planeta. Alguns cinéfilos abastados se dão ao luxo de pegar um avião para assistir aos filmes em competição nos grandes festivais, para julgar por si próprios os critérios das premiações. Outros, também radicais, são capazes de deslocar-se milhares de quilômetros, por um dia ou dois, para estar presente na estréia mundial em Paris, Londres, Madri ou Nova York, do último Almodóvar, Lars von Trier, Angelopoulos ou Manoel de Oliveira. Quando pode, o cinéfilo assiste pela TV à entrega dos prêmios César (francês), Goya (espanhol) ou Globo de Ouro (norte-americano) – sem mencionar os nacionais de Gramado ou Brasília. E, claro, embora o genuíno cinéfilo, não ligue para o mundanismo de Hollywood, ele gosta de assistir à cerimônia da entrega do   Oscar. Gosta mas, se estiver no Brasil, não pode ver a festa hollywoodiana de cabo a rabo. A menos que tenha TV a cabo em casa e sintonize o TNT. E por que não pode?  Simplesmente porque a famigerada TV Globo o impede, num flagrante e inadmissível desrespeito ao telespectador. Como assim?  Porque a Globo vende gato por lebre e oferece, enganosamente, um produto adulterado, por assim dizer. Ou seja, transmite a cerimônia do Oscar com uma hora a menos. Não uns minutos a menos. Não. Uma hora! E isso não acontecia quando o Oscar era transmitido pelo SBT. Mas a TV Globo, quintessência da voracidade da globalização por excelência, tem a desfaçatez, numa atitude não só fraudulenta, arbitrária e abusiva, mas sintomaticamente fascista, de cortar quase um terço da festa do Oscar, mutilando assim o espetáculo. Logo, seria mais honesto avisar o telespectador que ela vai transmitir parte da cerimônia de entrega do Oscar. Ou então, o que seria ainda mais honesto, deixar que outra emissora a transmitisse integralmente. E por que motivo a TV Globo faz isso? Porque até as 23 e 30 (o Oscar começa às 22 e 30 local) ela exibe o Big Brother Brasil (que deveria se chamar Big Bosta Brasil), esse lixo, esse miserável programazinho para retardados, de um mau gosto insuportável, de baixo nível e que nem sequer é engraçado, pois provoca um tédio de anestesiar um elefante. E a coisa fica por isso mesmo. Ou seja, ninguém diz nada. Ninguém reclama. O telespectador que se dane. Sim, o bobo do telespectador que engula o embuste e fique quieto. E quando o governo, timidamente, como tudo o que faz (com exceção da corrupção e da impunidade) tenta fazer algo para corrigir esses abusos e regulamentar os direitos de transmissão, a Globo é a primeira a protestar contra a “censura” e clama, cinicamente, pela liberdade de expressão. Liberdade de expressão, uma ova. Ganância, lucro, só. Parece piada, mas não é. Como se ela não tivesse, quando lhe interessa, a própria censura, ou seja, a autocensura que começa pelo enfoque dos noticiários. Alguém pode rebater que, de modo geral, o telespectador não está muito interessado na festa do Oscar. Certo. Mas é uma questão de princípios. De respeito ao telespectador. Se a Globo detém os direitos de transmissão da cerimônia do Oscar, ela tem a obrigação de transmiti-lo na íntegra. Mas, e isto tem tudo a ver com o que acabo de dizer, voltemos ao torcedor de futebol com quem iniciei este texto. O totalitarismo da Globo obriga o torcedor a ver o jogo, no campo, às 21 e 45, que é o horário de transmissão que lhe convém. E o torcedor, em sua grande maioria povão, acorda no dia seguinte às 5 ou 6 horas para trabalhar. E o torcedor não é cinéfilo, não é minoria, é massa. E ninguém faz nada. Pois o dinheiro compra tudo. E é essa frouxidão, essa inércia, esse deixa-pra-lá, que exaspera.

02-03-2008
R.Roldan-Roldan é escritor
davidhaize@ig.com.br

Artigo publicado pelo jornal “Correio Popular” de Campinas a 13 de março de 2008

Não deixa de ser relevante que, no espaço de duas semanas, foram exibidos em Campinas três filmes de guerra. Até aí, tudo bem, normal. O interessante, e não tão comum, é que esses três filmes eram antibelicistas. E humanistas. O que, pela lógica, é um atributo decorrente do primeiro. Dois, norte-americanos, esplêndidos: A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, ambos de Clint Eastwood. O terceiro, embora sem atingir o nível dos dois citados, mas não menos humano e emocionante, é o francês Feliz Natal, de Christian Carion, que infelizmente pouca gente viu. Os três filmes questionam a guerra e o conceito de herói construído pelo poder estabelecido e deixam implícito que, quanto mais ignorante é o povo, obviamente mais fácil ser manipulado e servir de bucha de canhão para o fanatismo nacionalista ou religioso, o que, em outras palavras são os interesses criados. Estabelecendo parâmetros entre os dois filmes de Eastwood – que teve a honestidade de filmar a visão nipônica de Iwo Jima – e as atuais guerras do Iraque e Afeganistão, perceberemos que a atual bucha de canhão fornecida pelos pobres rapazes norte-americanos de classes sociais inferiores (sempre foi assim) é enviada para essas duas nações não para defender a pátria (o que até certo ponto justificaria uma guerra – se é que uma guerra pode ser justificável), mas para defender o interesse das grandes corporações.

Quanto a Feliz Natal, nada mais tocante que a confraternização, na noite de Natal, entre inimigos: alemães de um lado e franceses e escoceses do outro – fato verídico ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial. E abafado durante longo tempo. E, continuando com a cinematografia antibelicista, como não lembrar, o mais poderoso libelo contra a guerra, a obra mais angustiante, opressiva, contundente, mais desesperadamente kafkiana, que é Johnny Vai à Guerra, único filme de Dalton Trumbo? Escritor e roteirista perseguido pelo macarthismo, seu filme foi na época (1971) proibido pela censura de vários países porque incomodava demais. E certamente não com um árido discurso político. Mas levando a mais dura emoção à consciência.

Mas deixemos as guerras e seus heróis – ou pseudo-heróis – e abordemos os livros, embora sempre no âmbito cinematográfico. Livros: material antifascista por excelência. Recentemente assisti, pela TV a cabo, a uma obra de Truffaut. Um belo filme de 1967, baseado num romance de Bradbury: Fahrenheit 451. Como ficção científica, o filme pode parecer um tanto datado hoje em dia, 40 anos depois. Mas paradoxal e curiosamente soa profético e permanece atual. Atual porque no século 21 não temos bombeiros especializados na busca e destruição de livros – numa sociedade onde estavam proibidos. Não. Já não se queimam mais livros de literatura. Pelo menos no Ocidente. Mas temos um sistema altamente interessado – embora não o exponha explicitamente – em desencorajar a leitura de livros. Um sistema em que a cultura, sua memória, o discernimento crítico, a lucidez e a desmistificação se opõem diametralmente aos objetivos mercantilistas que imperam em nossa sociedade imediatista. E ler, não lixinhos de auto-ajuda ou baboseiras edulcoradas, reativa a mente e faz pensar. Ler acaba inquietando. E todos sabemos que os que pensam não são bem vistos. Simplesmente porque, no mínimo, questionam a (suposta) ordem e podem, eventualmente, semear a discórdia. O que certamente não é… produtivo.

Bem, e o que têm a ver os dois filmes de Eastwood, o de Christian Carion e o de Truffaut? Qual é a relação entre belicismo e livros na fogueira? Tudo a ver. Sim. Tudo a ver. Já que é com livros – logo com educação, com cultura, erradicando a ignorância e as superstições – que se afastam os demônios do fanatismo nacionalista ou religioso. É com livros que a bucha de canhão é capaz de se sublevar e dizer não.  É com livros que uma nação pode ser paralisada para dizer não e enveredar pelo caminho da justiça social. É com livros que se atinge a razão na acepção mais profunda do termo. A do humanismo. Sim, com livros. E não com lixo televisivo, internáutico ou consumista.

21-02-07
R.Roldan-Roldan é escritor
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Artigo publicado pelo “Correio Popular” de Campinas a 14 de março de 2007

Há uns dias estava almoçando e lendo o jornal. Como costumo fazer. E uma notícia travou os alimentos em minha garganta – não deveria ler enquanto como. E o sangue subiu. Como deve ter subido em milhões de brasileiros. Ou não? Será que a consciência da dignidade ainda faz subir o sangue nos habitantes do Brasil? Ou chegamos a tal ponto de indiferença ou passividade que nos torna desprezíveis? Um inadmissível estado de deixa-pra-lá onde tudo o que ocorre de abjeto neste País termina numa desconcertante frase: não adianta, é assim mesmo. Como se fosse absolutamente natural que o salário de um parlamentar seja de R$ 24.500 e o mínimo ainda seja 350,00 miseráveis reais. O que é uma afronta. Num país onde um terço da população vive, não na pobreza, mas na miséria. Neste caso a expressão da revolta é um ato de dignidade. E esse ato se resume, não em incendiar ônibus e carros e em destruir lojas (o que seria plenamente justificável e compreensível – e digno? – levando em consideração que seria o único “diálogo” que essa corja, eleita pelo povo, entenderia), mas em paralisar o País inteiro, como qualquer país decente, sério, justo, civilizado e digno faria. Sim, porque um povo digno se manifesta. Um povo digno sai às ruas. Um povo digno paralisa uma nação para mudar uma lei, como, por exemplo, fez o povo francês no primeiro semestre para obrigar o governo a revogar a lei do primeiro emprego – e a lei foi revogada como manda a verdadeira democracia. Já que toda lei é feita pelos homens, logo suspeita, ou seja, sujeita a parcialidade. E quando a lei não atua para o bem do país, seja qual for a lei, seja qual for o país, ela deve ser eliminada. Pois como podemos admitir a vergonha, a pilantragem, a rapinagem, a desfaçatez, o cinismo, o coronelismo, o totalitarismo, o roubo, o abuso de poder, a ditadura dos parlamentares melhor remunerados do mundo? Qual é a diferença entre um traficante e um parlamentar (salvo raras exceções)? Nenhuma. Já que o enriquecimento de ambos é ilícito. Minto: o dos parlamentares é acobertado pela lei. E tem mais: o salário dos traficantes não é pago pelo contribuinte, mas o dos parlamentares é. Logo, uma lei que permite essa aberração social deve ser revogada. Aliás, determinadas leis deveriam ser submetidas a um referendo popular como manda a verdadeira democracia. Um governo (ou o termo sistema seria mais adequado?) conivente com esse ultraje é indigno, logo não é aceitável e deve ser combatido. Um povo que silencia, que não se movimenta e promulga o seu Não em altos brados e aceita essa indecência, essa imoralidade, é indigno. E que fique explícito que não estou absolutamente pregando a violência – como os tendenciosos estariam inclinados a pensar – ou o discurso dialético, como os egoístas estariam propensos a concluir. Não. Nada de proselitismo: não faz o meu gênero. Falo de algo natural. Ou que deveria ser natural. Falo de consciência humana (redundância?) e de dignidade. E permitam-me lembrá-los de que a dignidade se obtém com a ação. Certamente não com o determinismo que trava a humanidade. Não existe determinismo histórico. Existe apenas a História. Mas… a Revolução Francesa de 1789 ainda não chegou ao Brasil. E nem sequer toquei na ética, porque aí entraria no capítulo da barbárie. Deixo-a para uma outra ocasião. E, como não sou demagogo, não aproveito a época natalina para invocar o famigerado espírito de Natal. Talvez apenas apele para um remoto sentimento cristão de generosidade.

17-12-2006
R.Roldan-Roldan é escritor
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Publicado no jornal “Correio Popular” de Campinas a 21 de dezembro de 2006

O conceito de democracia, aliás, como todo conceito, é relativo. Faço minhas as palavras do grande Lars von Trier – o meu conceito de democracia é outro em relação ao conceito democrático da era bushiana. Mas não se assustem. A presente carta não tem por meta digressionar sobre a famigerada globalização com as suas seqüelas de concentração de renda, desigualdade social, desemprego mundial e as assustadoras estatísticas da ONU sobre o aumento da miséria no Planeta. Nem sobre a nostalgia de uma esquerda demodée e no fundo pouco revolucionária que pouco fez – ou o fez errado – para que de fato se instaurasse a verdadeira democracia no mundo.

Não. O objetivo desta missiva é outro. Menos abrangente. Quantas vezes não nos deparamos, num bar de música a vivo, com um músico, um cantor ou uma cantora, cujas atuações são notáveis e que recolhem apenas meros aplausos protocolares, quanto muito, de um público indiferente, mais interessado na conversa de botequim do que em suas performances? Não é humilhante? Músicos e cantores que lutam durante anos para conseguir um lugar ao sol e que se vêem obrigados a gravar os seus discos de modo independente, ou seja, marginal, porque são recusados pelas grandes gravadoras, enquanto a televisão nos impinge verdadeiros lixos sonoros fabricados e promovidos por uma determinada mídia ávida de produtos (não é o termo que se usa?) absolutamente descartáveis. E o mesmo acontece com os artistas plásticos que vêem as suas obras recusadas pelas grandes galerias de arte. E o mesmo ocorre com os escritores que… E chego onde queria chegar, restringindo-me a um fato (e digo fato) que me diz respeito: os prêmios literários no Brasil. Não se trata de denunciar tramóias, fraudes, favoritismo ou cartas marcadas em relação a prêmios literários. Isso já foi denunciado muitas vezes e, qualquer um sabe, por exemplo, que o tradicional pseudônimo da obra inédita submetida a um júri é história para inglês ver, sendo que isso não significa nada quanto à idoneidade e imparcialidade dos membros do jurado.

O que quero expor aqui é a perpetuação de um sistema injusto que elimina toda e qualquer possibilidade de conceder uma chance (não de ganhar, mas de concorrer) a escritores novos e não tão novos que não têm oportunidade de ver os seus trabalhos reconhecidos, não por um pequeno grupo de colegas amigos, mas por um público mais amplo. Portanto, não deixa de surpreender, para não dizer espantar, que os organizadores do prêmio literário Portugal Telecom, que se gabam do teor democrático (“a disputa é bastante democrática”) do prêmio, não tenham se dado conta de que a estrutura seletiva do concurso é absolutamente antidemocrática. Antidemocrática por quê? Simplesmente porque privilegia os autores publicados pelas grandes editoras do eixo Rio/São Paulo, salvo raríssimas exceções. Mas, alguém pode objetar, os melhores autores brasileiros são editados pelas grandes casas editoriais do País! Sim e não. As grandes editoras publicam bons livros, mas também publicam livros que, se não chegam a ser lixo (como disse Salman Rushdie a respeito do Código Da Vinci, de Dan Brown) são obras que não só deixam muito a desejar, como estão longe de serem literatura. Explico-me. E diretamente. No caso do Prêmio Portugal Telecom, que chance tem um escritor (sério, não picareta) que, por um motivo ou por outro, teve o seu livro recusado pelas grandes editoras e se viu obrigado a publicá-lo por uma pequena editora alternativa (vejam bem: chance de apenas concorrer)? Nenhuma. Absolutamente nenhuma chance. Já que essas pequenas editoras não têm praticamente divulgação nem distribuição e que os seus livros, quando lançados e enviados a jornais e revistas importantes, são totalmente ignorados (quero dizer nem lidos), pois esses autores desconhecidos não são figuras interessantes para a mídia e, conseqüentemente, são automática e preconceituosamente descartados. E o que estou colocando aqui são fatos, aliás, só me atenho a fatos. Portanto, os membros do júri só podem, evidentemente, julgar as obras que já leram, presumo eu. E se um livro de editora alternativa não chega às mãos de um crítico, de um professor de literatura ou de um outro escritor, como é que esse livro poder ter a chance de participar do concurso? Esse livro simplesmente não existe. Alguém poderia alegar: mas esses livros publicados pelas alternativas são ruins de doer. Nem sempre. Existem bons autores brasileiros que continuam marginalizados, no limbo. E outros, medíocres de deixar um leitor mais exigente irritado, são publicados por respeitáveis editoras e endeusados por uma crítica suspeita dada a modismos que geralmente são importados. Logo, esse raciocínio que rotula editora alternativa como sinônimo de publicações ruins, não se sustenta. Todos nós sabemos que grandes vultos da literatura mundial, como Proust, Rimbaud e Lautréamont, por exemplo, se viram obrigados a publicar as suas obras por conta própria. Tudo é relativo, como disse no início deste texto.

Acredito que o verdadeiro procedimento democrático é a leitura dos livros de todos aqueles escritores que desejam participar do certame, e não daqueles privilegiados que têm a sorte de terem sido publicados por editoras importantes. Não estou propondo uma utopia. Apenas o bom senso. Ou seja, um processo de seleção e avaliação justo e realmente democrático. Sim, é evidente que isso dá muito mais trabalho. Mas o justo, o eqüitativo, dá trabalho. E, como a verdadeira democracia é dinâmica, ou seja, susceptível de ser mudada, alterada, melhorada…

07/05/06
R.Roldan-Roldan
Escritor
http://roldan.vila.bol.com.br

davidhaize@ig.com.br


Publicado pelo jornal “Correio Popular” de Campinas em maio de 2006